LAVRANDO A ÁGUA
Campos do Mondego inundados / Zona de Montemor-o-Velho / Inverno de 2001
A caminho do Outono, apressadas, correm as
árvores pela paisagem fora. Já são de ouro as cores das folhas que se espalham
pelas mãos, à beira de todos os caminhos do corpo, quando o vento anuncia chuva
e refresca os olhos cansados de tanta viagem pelo deserto das emoções.
Vamos, em breve, iniciar um outro ciclo de
encontros desencontrados, como se o Outono tivesse que ser a estação de partida
e de chegada de todas as viagens empreendidas ao sabor da memória e dos dias
que a justificam.Vamos, por certo, atravessar os extensos campos de arroz quando os homens e as máquinas já se preparam para a ceifa das espigas maduras e alguns bandos de garças-boieiras ensaiam voos de migração rumo ao sul, rumo à Primavera de todas as aves.
Vamos, ainda, deixar os olhos recordar o verde do vale quando a luz rasante da manhã enobrecia os tons vários dos arrozais, ou quando as cores do poente pareciam antecipar-lhes a maturação. E o Mondego, de permeio, sempre a dividir a jornada entre a ida e a volta, como se ter que atravessar uma ponte fosse a mais correcta desculpa para tudo o que os olhos desejam: habitar, por exemplo, as ruas e os largos daquela aldeia do poeta Afonso Duarte, que a memória ainda vê rodeada de água por todos os lados, qual ilha perdida na bruma dos campos alagados pelas águas férteis de um Inverno que o rio deixou sair de suas margens. De longe, através das janelas de uma velha carruagem de terceira classe, vemos ainda, nítidas, as casas reflectidas no vasto espelho da manhã, só quebrado aqui e ali pelos ramos angustiados das árvores que tentam sobreviver a tal tormento, enquanto o comboio se afasta, ronceiro, contornando os campos semeados de água e desespero.
Vamos, pois, ter esperança nas viagens que havemos de fazer pelas cores adentro que as árvores, propositadamente, foram abandonando em nossas mãos. E não deixaremos que tal esperança desapareça nas águas quando elas baixarem e quase só alimentarem as valas de enxugo que vão riscar a paisagem como esteiras de luz, anunciando, assim, o fim de todos os invernos. Começam, então, os primeiros amanhos dos campos, com os animais e as máquinas a lavrarem a terra e a água onde crescerão as espigas que iluminam o nosso contentamento de hoje.
Vamos, sobretudo, fazer o elogio da lavoura que permite ao corpo o sustento das mãos, espalhando, como adubo natural, as boas recordações de ontem sobre todos os campos agora já arados, para que as espigas cresçam mais depressa e o grão seja mais suculento.
Assim, a boca agradecerá a festa e o esforço.
Augusto Mota, texto 87 de «A Geografia do Prazer», 1999
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