30/01/2014

Rosário breve

 
 
Projecto esverdeado por uns olhos




Os sonhos são para se ter a dormir.
Os projectos são para se ter quando acordado.
Os meus sonhos são estapafúrdios (como o são, suponho, os de toda a gente), mas os meus projectos são simples. São simples e são poucos.
Um deles consiste tão-só nisto: ir, um destes dias menos agrestes, tomar café àquele Vale a que Santarém dá nome e que a Santarém franqueia o Sul. A Vale de Santarém chegado, muito prazer me viria de, permeando o portal da Sociedade Recreativa Operária local, encontrar quiçá a senhora Teresa Horta e/ou o senhor Alfredo Silva, habitantes que são daquela geoformosura apenas maculada pelos fedores residuais do (deficiente) tratamento de imundícies. Com ela e com ele à cavaqueira a mais amena, julgo o mais crível este cenário: o senhor Alfredo evocando o poeta local que de nome houve João d’Aldeia, autor assinante da quadra consagrada e honrada em azulejo a azul-nascente:
                                    Lavadeiras que lavais
                                    Na água doce e branquinha
                                    Nos suspiros que vós dais
                                    Está toda a esperança minha.
E de pronto, certo disso estou e fico, a senhora Teresa ajuntaria ao lume oratório a suave cavaca do espectro benigno e gentil da Joaninha dos Olhos Verdes, essa feminil e virginal musa de rouxinóis que o grande Almeida Garrett ali vincou e fincou para sempre, entre as águas que correm no Tempo que se não cansa, nas nunca por de mais celebradas Viagens na Minha Terra.
Há tempos já que tal projecto me incandescia o íntimo escrivão, mas a coisa agravou-se quando, a 8 de Dezembro passado, vi uma breve reportagem da Local Visão TV. Tomei notas logo, muito bem de antemão sabendo eu que de algumas me adviria o presente cronicar. Por e de tais imagens, foi-me possível, sem esforço algum e sem do sofá levar o fofo cindido, voltar a subir ao diadema vivo das Portas do Sol, sentindo à esquerda essa jóia (i)memorial chamada Casa-Museu Passos Canavarro e, a toda a larga volta, o esplendor elástico que o régio Tejo, qual veia aberta, atira em poalha de cobalto à pureza inefável e diáfana do ar, esse ar que só no Ribatejo assim se pode respirar com os órgãos da vista. A luz, muito alta e muito irrígua, toma conta de um gajo sem lhe pedir, e muito menos lhe dar, explicações.
Deixei-me por ali estar quanto pude, saciando de saúde as sílabas e os pulmões, cuidando só de não sentir essa fome que, parece, um tal senhor chamado Tiago Leite, afinal mero nosso empregado porque funcionário público, abespinhadamente afiança que só passa quem quer, por mais pobre, no distrito a que Santarém dá nome também.
À noitinha, porém, a realidade, que não se compadece nem de sonhos nem de projectos, muito menos de sonhadores e de projectistas, contou-me os caracteres e mandou-me encerrar a crónica: foi quando a minha Senhora (que me esmolou comigo se casando), mui alquebrada de honesta fadiga, chegou a casa. Arguta como pardal e bífida como é da fêmea serpentina condição, deu logo por que sobre a mesinha-de-centro havia não uma mas duas chávenas de ex-café. A de excesso não podia ser minha – era, claro, a da clara Joaninha.
Ou a de toda a esperança minha. 


Crónica de Daniel Abrunheiro, in «O Ribatejo», de 30 de Janeiro de 2014

 


Fotografia de Augusto Mota / "Olharapo" (no topo com manipulação cromática e rotação horizontal). 


*editado por augusto mota

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