à Fernanda Sal Monteiro,
com dois dias de atraso
Orlando era um rapazinho estranho. pertencia ao 2º-5ª, a turma dos reguilas.
"foram todos escolhidos a dedo" - diziam alguns colegas.
era o Orlando, o Rui, o Fernando, o "Caixinha". irreverentes, não submissos, nos seus 15 anos. fartos de matérias repetidas em anos transactos, tornadas monótonas pelo cansaço do próprio cansaço. procuravam pelo afrontamento, acordá-la do tédio, despertá-la para a realidade do quotidiano, despi-la das suas certezas.
era a esperança metamorfoseada na adolescência.
era a Vida.
"sôtora, o Orlando hoje está bêbado. foi almoçar na venda da esquina e obrigaram-no a beber uma porrada de vinho. é verdade, sôtora - dizia o Caixinha -
começaram a dizer-lhe que não era homem, não era nada, se não aguentasse um copo de vinho. que o vinho dá força à gente. eu cá tive medo e não quis. o gajo chamou-me maricas. depois o Orlando sentiu-se mal disposto e fartou-se de vomitar. se a sôtora visse o ar do homem
volta-se aos berros com a gente - como se eu tivesse alguma culpa -, a dizer que não queria javardos no restaurante dele. que até tinha uma filha professora no Alentejo".
a cabeça loura do Orlando acordava nos braços cruzados sobre a carteira. olhos brilhantes. uma babedeira, a que a estupidez dos homens tirara toda a irreverência e tornara submissos, aguardavam, confusos, a cumplicidade da sentença
uma falta, a participação, outro chumbo, uma nova turma de repetentes reguilas, porque "foram todos escolhidos a dedo" - lia-se na semiconsciência dos seus olhos brilhantes.
no dia seguinte não apareceu na Escola. passou o trimestre.
as matérias repetiram-se. a monotonia e o tédio vestiram a insapiência do seu saber. os dias voltaram a ser iguais no cansaço do seu cansaço.
começava o mês de Março. um sorriso louro escondia uma camélia queimada pelo orvalho das manhãs. era o Orlando.
"amanhã vou para Lisboa e depois para Inglaterra. a minha mãe que trabalha num hotel escreveu a dizer que arranjou-me trabalho. o meu irmão também lá está. foi por isso que eu deixei a Escola. andei com os pedreiros".
"não tens pena de deixar a tua avó, os teus amigos?"
"a minha avó? essa nunca me ligou, e amigos há muitos. mas não queria abalar sem me despedir da sôtora e trazer-lhe isto".
estendeu-a sem jeito e partiu.
"obrigada, Orlando".
"obrigado, não. - voltou-se. - ou melhor!, obrigado, sim, pela falta que não me marcou naquele dia".
aquela camélia murchou. muitas outras se têm aberto. todavia, a cabeça loura do Orlando adormece ainda nos braços cruzados da sua memória ... gabriela rocha martins
6 comentários:
prometi, cumpri.
gosto de cumprir o que prometo, mesmo com dois dias de atraso.
espero, todavia, face às circunstâncias, ser desculpada.
um diferente beijinho de parabéns, amiga!
Sua marota, menina Gabriela!
essa de retirar o poema, depois de comentado, não se faz! Ai!Ai!Ai! ( isto é pura brincadeira, sabe-lo bem ).
Até porque a troca favorece a Fernanda que vai sentir-se mais identificada com este teu texto.
Um abraço, amiga!
E de que maneira, Teresa ! A Maria Gabriela tem-me estragado com mimos! Com dois dias de atraso e no próprio dia, as surpresas agradáveis são tantas que até apetece fazer anos todos os dias... Muito obrigada, digo eu também, pela evocação das camélias que, antigamente, minha Mãe punha sempre no meu quarto, neste dia! Pela evocação da vivência de professora, tão cheia de episódios semelhantes ao do texto. E sobretudo pela Amizade que me vota e que retribuo com calor.
Muitos beijinhos.
Uma visita mais demorada traz-me a revelação de uma alma sensibilíssima.
Belo conto Gabriela!
Que regalo para a alma!
A memória, às vezes, tem destes belíssimos caprichos...
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