22/09/2012

A rosa inominada

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Foto, palavras e arranjo gráfico: Augusto Mota, Junho de 2008
 
 
 

15/09/2012

Tempo de solidão e de incerteza









Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação.

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão.

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o  sangue  não tem rasto
Tempo de ameaça.
 

Sophia de Mello Breyner Andresen
 
“Data in «Livro Sexto», 1962, Livraria Morais Editores, 7ª ed, 1991
Foto: Augusto Mota

14/09/2012

Eu vou com a luz

 
 
 
 
 
 
 

O dia assenta em varas de cristal -
Quatro são, mais o puro pensamento:
É esta quinta vara que lhe vale,
Erguendo-o, poderosa, bem ao centro.
 
Como tenda de circo que se instale
Sobre as cinco varas que eu invento,
O ar é pano de luz que desce lento,
E a manhã só se acende ao meu sinal.
 
Oh, cinco varas, cinco dedos d'alma,
Puxando o infinito para perto,
Pra que eu me perca no azul do ar.
 
Breve, minha inquietação se acalma
E o meu coração bate mais certo -
Vou com a luz quando o dia acabar. 

 
 
 
 
 
 
Soneto: António Simões, 2004
Fotos: Augusto Mota2012 



13/08/2012

Colateralidades 6







10/08/2012

Ofélia morta, de John Everett Millais





Está morta
uma grinalda à volta da cabeça
flores nas mãos e nos braços
permanece de olhos ainda abertos
mas já não vê o amado
É obra de John Millais
pintor inglês pré-rafaelita
que conhecia
o drama das muitas mortes:

um rei que mata o irmão
e casa com a cunhada
rainha viúva
e mãe que era de Hamlet

o príncipe que mata Polónio
por acidente
e o rei usurpador e assassino
por vingança

Laertes e Hamlet eram amigos
e matam-se também
nesta teia de equívocos
arquitectada por Shakespeare

Ofélia terá caído à água
ou ter-se-á suicidado
nas águas transparentes do rio?
Isso agora de nada vale
e o quadro nada nos diz.

                             Luís Serrano



in «QUANDO SE APAGAM AS CEREJEIRAS», Chiado Editora, Lisboa, Julho de 2012, p.78.
Ilustração: "Ofélia morta", célebre quadro do pintor pré-rafaelita John Everett Millais, 1852.

09/08/2012

Depois do esquecimento







Depois do esquecimento
é o nada
às vezes a flor do remorso
a lágrima tardia
o silêncio.

                            Luís Serrano


in «Quando se apagam as cerejeiras», Chiado Editora, Lisboa, Julho de 2012, p. 15.
Foto de Augusto Mota / centro de uma flor da aboboreira Manteiga, Agosto 2012.


Para comemorar os 50 anos de vida literária do autor, a Chiado Editora, com o apoio da Universidade de Aveiro, acaba de editar esta obra de Luís Serrano, que ele dedica à memória do Fernando Assis Pacheco e do João Vário.
A propósito desta mais recente obra poética do autor, transcrevemos, com os devidos agradecimentos, a apreciação crítica de Manuel Simões, publicada no «As Artes Entre as Letras», de 11 de Julho de 2012:
A POESIA RESISTE À LEI DA MORTE

(A PROPÓSITO DE “QUANDO SE APAGAM AS CEREJEIRAS”,  DE LUÍS SERRANO)

Quando se Apagam as Cerejeiras (Chiado Editora, 2012), título do mais recente livro de poesia de Luís Serrano – e que com ele se celebram 50 anos de vida literária do autor – é uma belíssima metáfora cuja amplitude reflecte um discurso que, na sua globalidade, aflora sobretudo acentos crepusculares. Não é, pois, por acaso que este corpo textual se constrói a partir de elegias a poetas que marcaram o nosso tempo (Manuel Amaral, Eugénio de Andrade, Fernando Assis Pacheco, com explícitas referências a Rilke, por exemplo) ou da representação de obras artísticas, com predilecção pela pintura ou escultura mas na maior parte dos casos pela música, de que o requiem constitui composição privilegiada pelas emoções que alguns exemplos ilustres não podem deixar de transmitir, tornando-se assim matéria de poesia.
Nesta organização textual em que parece encontrar-se subjacente o triunfo da morte, este elemento está porém em contraposição com o seu oposto, isto é, com a vida, embora se acentue a fragilidade que irremediavelmente acomuna os dois pólos, como se pode ler nesta reflexão essencial: «São frágeis os fios por onde a vida e a morte se articulam […] Mas esses fios são as linhas contraditórias que se cruzam sobre a obra de arte, ela própria um grito da vida e uma antecipação da morte» (“A propósito do Requiem de João Pedro Oliveira”, p. 31).
Vida e morte estão fatalmente ligadas pelos fios da consequencialidade, sabiamente confundidas mesmo a nível elementar, mas na obra de arte a vida acaba por se reflectir através da metamorfose actuante, subtraindo do esquecimento eventos ou figuras, prolongando os ecos da vida e, nalguns casos, amplificando e alimentando o mito, como no poema “Os Túmulos de Pedro e Inês”: «Quem sabe se não / foram os três anjos colocados/ à cabeceira de cada um/ que impediu a sua morte// vivos que estão ainda/ no rio da memória/ para hoje e para sempre?» (p. 61); ou na transfiguração de “Sinfonia nº. 7 de Chostakovitch: «A sinfonia ficou: homenagem/ possível para quem sofreu/ a dor o desalento o desespero» (p. 91).
Na elaboração de tal discurso poético, precisamente porque se contrapõem os extremos de um itinerário vivencial, tem uma importância nuclear o tempo como categoria numa dupla dimensão: a sua implantação como componente da história em articulação com o seu manifestar ao nível do próprio discurso. É óbvio que para a condição humana é fundamental a vivência do tempo, como aqui se testemunha através do devir existencial que filtra o tempo («falo do relógio sem ponteiros», p. 33), o que nos leva a interrogar se é o tempo que passa ou se somos nós que passamos, o que determina a incidência fundamental do tempo psicológico, também referente da sua mudança irreversível («Há um tempo perdido/ uma rosa dissimulada/ uma dor um rosto antigo», p.32; mas também «Há um peso no que sobra/ do tempo passado», p. 36), do desgaste e da usura que sobre a mudança exerce a passagem das horas e as experiências vividas: «É verdade que as árvores/ continuam a crescer/ mas o verde não é mais/ o mesmo e as folhas caem/ nos degraus melancólicos/ do Outono» (“No tempo em que…”, p. 36).
Na sua poética, que desde a estreia na revista Êxodo, de 1961 (com Herberto Helder, Rui Mendes e o malogrado poeta caboverdiano João Vário), passando por Poemas do Tempo Incerto (1983), Entre Sono e Abandono (1990), As Casas Pressentidas (1999) e Nas Colinas do Esquecimento (2004), revela uma perfeita geometria rítmica e a «projecção metafórica de uma realidade em decomposição, sujeita a um processo degenerativo, da fragmentação de um mundo do qual nos fica a memória através da palavra» (como noutro lugar já tive ocasião de salientar), o discurso inscreve também aqui um tempo balizado por cicatrizes, pela inquietação e pelo medo («Havia desemprego/ miséria fome desesperança; era a Grande Depressão/ de vinte e nove», p. 64), e uma história cultural e social de luzes e sombras mas cujas marcas eloquentes emergem à superfície do texto, mesmo que por vezes pareçam assumir-se apenas como «um deserto/ de alguns sinais/ de magoada escrita» (p.13).
Saliente-se ainda que Quando se Apagam as Cerejeiras, na sua totalidade, elege programaticamente a poesia substantiva e que os poucos adjectivos que pontuam o texto funcionam como elementos acentuadores de uma melancolia que percorre transversalmente todo o discurso. E acentue-se, por fim, o recurso à memória e à sua hermenêutica, numa conjugação que as torna elementos primordiais no evoluir da expansão textual, isto é, da polifonia que se distribui por «harmonias e dissonâncias», tudo matéria da poesia, «esse afecto especial/do coração».

 Breve resenha biográfica de Luís Serrano:
Nasceu em Évora em 1938. Licenciou-se em Ciências Geológicas (UC). Estudos especializados na Universidade de Bordéus e em Madrid (CSIC). Assistente da Faculdade de Ciências da UC(1967.1970), geólogo da Direcção-Geral de Minas (Porto, 1970-1975) e investigador da Universidade de Aveiro (1975-2001). Entre 1996 e 2001, responsável pela coordenação cultural desta Universidade.


22/07/2012

Colateralidades 5



Aguarela





Naquele pic-nic de burguesas
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.




CESÁRIO VERDE, in «O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL», 1880.


Este poema dedicado a Guerra Junqueiro, é intitulado «De Tarde» na edição de Silva Pinto. 

Fotos: Augusto Mota, obtidas numa bordadura de papoulas nas margens do rio Lis, zona de Monte Real.

24/06/2012

Colateralidades 4




O quarto em desordem





Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor.  Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor

que não se sabe como é feita:  amor,
na quintessência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objecto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo! corpo, corpo,

verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto pela cama,
a passear o peito de quem ama.


                   Carlos Drummond de Andrade 

in «FAZENDEIRO DO AR & POESIA ATÉ AGORA», Livraria José Olympio Editora,
      Rio de Janeiro, 1955, capítulo Fazendeiro do Ar, p. 519.
Foto: Augusto Mota / centro de um Lírio-aranha (Hymenocallis festalis)


20/06/2012

Colateralidades 3





20/05/2012

............................. arrasto






chegam as palavras

lançado o arrasto
ao mar
prende.se no horizonte
dos barcos
suspensos
nas marés

há silêncios
amargados
no cais

partem os poemas

 
                  Gabriela Rocha Martins



Poema: Gabriela Rocha Martins, in Poem'arte.nas margens da poesia / Antologia da III bienal de Silves, Abril de 2008, p.165.
Foto: Cristina Pires, Vale do Garrão, Algarve, Agosto 2011.

As árvores anoitecem







Lentamente
as árvores anoitecem

são lanternas
que se apagam
por entre cânticos de luz
evanescentes e diurnos

como se um fogo íntimo
as devorasse
entre águas deslumbradas
e puríssimas

nenhum vento as perturba
memória nenhuma as divide

                                     Luís Serrano

                                

Poema: Luís Serrano, in Poem'arte.nas margens da poesia / Antologia da III bienal de Silves, Abril de 2008, p. 122.
Foto: Augusto Mota / anoitecer sobre o meu jardim, em 29 de Abril de 2012.

Colateralidades 2



 


 

 

Colateralidades 1





 



Este desenho de 1961, oferecido na altura ao meu amigo e artista plástico Pedro Frazão, revi-o recentemente em sua casa, passados todos estes anos, devidamente emoldurado e em lugar de honra, trabalho do qual não me lembrava ninimamente.  Fotografei-o para, agora, poder desenhar, a rigor, as palavras que ele me suscita e que são, também, uma homenagem à intensa e louca criatividade desses anos de brasa...

13/05/2012

Azulejos ARTE NOVA no Museu de Cerâmica de Sacavém



Inaugura no próximo dia 18 de maio, às 19 horas, no Museu de Cerâmica de Sacavém, a exposição itinerante «A Arte Nova nos Azulejos em Portugal», da colecção de Feliciano David e Graciete Rodrigues, depois da sua exibição em Aveiro e na Figueira da Foz.
«A Arte Nova nos Azulejos em Portugal» é uma exposição ímpar no panorama artístico e cultural português, que contempla mais de uma centena de painéis representativos das mais importantes fábricas nacionais – Sacavém, Fonte Nova, Devezas, Carvalhinho, Lusitânia, Constância e Caldas da Rainha, bem como de diversas fábricas internacionais.
Traz a público uma extensa e sistemática colecção de azulejaria nacional e internacional de pendor Arte Nova que, ao longo dos anos, foi cuidadosamente reunida por Feliciano David e Graciete Rodrigues, ilustres coleccionadores com admirável trajecto de colaboração com o Museu de Cerâmica de Sacavém. Esta exposição ficará patente ao público até final do mês de Janeiro de 2013.
Ganha destaque por se tratar da primeira exposição de azulejaria nacional exclusivamente dedicada à temática da Arte Nova. É comissariada por António José de Barros Veloso e Isabel Almasqué, especialistas em azulejaria, que também assinam os textos do catálogo.

Não perca esta cerimónia da inauguração, inserida nas comemorações municipais do Dia Internacional dos Museus, que conta com a presença de Feliciano David e dos comissários da exposição, além de um antigo trabalhador da Fábrica de Loiça de Sacavém, responsável pelo ateliê de azulejaria, que mostrará técnicas e métodos de produção mais utilizados.

12/05/2012






02/05/2012

Desencantado encanto






à memória do Adriano

1.

Como no pano
vai roendo a traça
assim o amor nos dói
no desengano.

E tal como o ciúme
nos doem as invejas,
quais larvas mordendo
a carne das cerejas.

E dói-nos a traição
mais do que nos dói
a dor sentida
no lume da paixão.

Neste país pequeno
tudo nos dói ou rói
dos costumes brandos
ao clima ameno

Que ameno e brandos
eles são suporte
dos fortes mandos.
E da tua morte.

2.

Pranto reprimido
ou desencanto encantado?
O que há ferido
o canto?

Que ácido veneno
ou inabitável solidão
te há corroído
o coração?


António Ferreira Guedes, 1983 (inédito)

Foto: Augusto Mota / um encantado poente sobre o meu jardim, 29.04.2012

Com a publicação deste poema inédito de António Ferreira Guedes, dedicado à memória do seu amigo e colaborador nas canções de intervenção, o Palácio das Varandas associa-se à homenagem que no próximo dia 5 vai ser prestada a Adriano Correia de Oliveira, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, homenagem integrada no 70º aniversário do seu nascimento, organizada pelo Sindicato dos Professores da Grande Lisboa.

26/04/2012

tarde cinzenta de abril





da minha aldeia vê-se o mar e a orla branca namorando a duna

que submerge na bruma pendurada nos pinheiros que ecoam

o som cavo das águas que adivinho revoltas como a chuva caída



é hora de estender o olhar e encontrar para lá da janela embaciada

a ternura doce e suave deste cravo onde meu peito se aconchega


Poema: Orlando Cardoso / 25.04.2012 
Foto: Augusto Mota / 26.04.2012

ABRIL 74




Compañeros, si sabéis donde duerme la luna blanca
decidle que la quiero
pero que no puedo acercarme a amarla
porque aún hay combate.

Compañeros, si conocéis el canto de la sirena
allá en medio del mar,
yo me acercaría a buscarla
pero aún hay combate.

Y si un triste azar me detiene y doy en tierra
llevad todos mis cantos
y un ramo de flores rojas
a quien tanto he amado.

Compañeros, si buscáis las primaveras libres
con vosotros quiero ir
que para poder vivirlas
me hice soldado.

Y si un triste azar me detiene y doy en tierra
llevad todos mis cantos
y un ramo de flores rojas
a quien tanto he amado.
Cuando ganemos el combate.


Lluís Llach / cantor e compositor catalão

Foto: Augusto Mota
 

25/04/2012

Cravos brancos



 


   Estes cravos brancos, plenos de dinamismo, são uma bela e poética
afirmação da pureza do 25 de Abril  de 74, que o tempo e os  
homens,  por palavras, acções e omissões, vêm colorindo
de tons múltiplos, tons e sons hoje ausentes da paleta
 do ideário desse dia pleno de tanta esperança…



 
Cartaz de João Machado, designer gráfico / Porto
Edição da Câmara Municipal de Almada
Palavras de Augusto Mota / Leiria

 

24/03/2012

um rasgo de mulher sentada dentro da chuva*



sairei porta fora com um saco de poemas
na mão e
deixá.los.ei à porta do primeiro vagamundo
que encontrar certa de que com eles cobrirei
o ruído deixado pelos carros que percorrem
a marginal dos sonhos
por vezes acho.me num torvelinho de entrar
vida a dentro trocando ditames por um pedaço
de ilusão ou
prendo.me à sombra de um regaço se o fio de
água que escorre de uma nuvem me deixar
fixa na figura que se esvai esguia em solidão
sou um murmúrio apodrecido no vento suão
ou um pássaro que segreda a um ouvido a
última balada que um dia há.de compor
diagnostico.me como uma palavra prenha de
alarmes e escorrego por uma brevíssima gota de
água ao encontro das marés vivas
há sinais de passos oblíquos no asfalto molhado e
a ignomínia da dor provoca.me um sentimento
intransponível de tristeza maior é ( então) que
acendo um cigarro na labareda do anoit'ser
antes de parir
o último poema vomitado por Cronos

um pássaro amarelo desfeito em escamas
cola.se ao meu silêncio


_____________________________________________
*poema inserido na Antologia “100 Poemas para Albano Martins” ,da Editora Labirinto


20/03/2012

Eis a Primavera!



Fotopoema





Quando vier a Primavera




Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

Fernando Pessoa / Alberto Caeiro



Glória





Depois do Inverno, morte figurada,
A Primavera, uma assunção de flores.
A vida
Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores.

Miguel Torga


Era preciso agradecer às flores




Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
Duma manhã futura

Sophia de Mello Breyner



fotos: Augusto Mota / a exuberância das ameixieiras em flor.

19/03/2012

Texto transversal





Silo da EPAC





                                            O Tejo
                                            Tem na boca,
                                            Encostada ao lábio inferior,
                                            Uma flauta de Pã.
                                            Trigo!
                                            Pão!
                                            Coração do sol,
                                            Suor do sul,
                                            Sangue em flor
                                            Feito grão.
                                            E agora,
                                            Há fome, há?
                                            Não, que não há!

Pedro Frazão, Lisboa, anos 80.

18/03/2012

As letras do meu afecto




A palavras não são meros conjuntos de letras e fonemas,
 são também a memória que trazem dentro delas.



Por acordo com a direcção do «Diário do Alentejo», as crónicas que a partir de agora partilharei nestas páginas não seguem o novo Acordo Ortográfico. Não por caturrice cinquentenária ou porque seja avesso à inovação, mas muito simplesmente porque este (des)Acordo é desonesto nos princípios que proclama, inútil nos fins a que se propõe e criminoso na forma como pretende alcançá-los.

Destina-se a coisa a unificar o que não pode nem deve ser unificado, e o facto de não conseguir fazê-lo é a razão primeira da sua inutilidade. Com ou sem o AO, um facto em Portugal continua a ser um fato no Brasil. E o fato que eu use não há-de ser diferente do terno que vestem os meus amigos do Rio e de São Paulo. Tal como, se lá for, não duvido que continuarei a ter boa recepção. Mas se os receber em minha casa, por vontade do AO não poderei proporcionar-lhes mais do que uma modesta receção.

De disparate em disparate, nem o nome dos meses escapa à fúria alegadamente normalizadora. Querem com isto que Abril passe a ser apenas abril, haja vinho novo em setembro e o Natal seja celebrado em dezembro. E qual é a utilidade de tal gesto?

Não é por os ingleses subirem de lift e os americanos de elevator que ambos deixam de chegar ao mesmo destino. Os espanhóis viajam de coche e os cubanos andam de carro, eventualmente da mesma marca, mas com certeza de anos diferentes. E entendem-se muito bem.

O AO não serve porque não presta, e não presta porque não faz sentido. A Língua defende-se preservando a sua diversidade, porque ela reflecte a história dos povos que a falam. As palavras não são meros conjuntos de letras e fonemas, são também a memória que trazem dentro delas. Memória delas e das coisas que designam, e das mulheres e dos homens que a falam. Não basta, pois, conhecer as palavras todas, é preciso saber como se usam.

O AO confunde muito mais do que simplifica, por exemplo ao promover o uso facultativo de uma ou de outra variante. Mas ninguém perguntou aos espectadores se queriam ser transformados em espetadores. E é o que se vê: tolejar converteu-se num desporto alternativo, a comunicação tornou-se mais difícil e a Língua ficará seriamente ferida se a prossecução do crime não for interrompida. E ainda pode sê-lo: uma iniciativa legislativa de cidadãos está presentemente em curso e as hipóteses de ser bem sucedida dependem apenas da vontade de todos nós.

As línguas têm o seu próprio tempo, as palavras crescem, vivem, e às vezes morrem, mas isso deve acontecer no respeito pelo ciclo natural do desenvolvimento humano. Uma língua amputada artificialmente e sem rigor nem sabedoria torna os povos que a usam inevitavelmente mais pobres, porque menos cultos. E um povo menos culto é um povo menos livre.

No apontamento sobre os lugares de Zeca Afonso que aqui publiquei há duas semanas, o AO retirou o c da palavra afecto. E eu gosto dele, entre outras razões porque me ajuda a abrir a vogal anterior. E porque aquele c é parte do código genético daquela palavra, e não há razão para que seja eliminado. No que depender de mim, farei tudo para poder continuar a usar todas as letras do meu afecto.

Viriato Teles, in «Diário do Alentejo», 16.Mar.2012

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