31/12/2005

Haste de Orquídeas.
Fotografia de Augusto Mota.

feliz ano novo / happy new year*

If a kiss was a raindrop
I'd send you showers.
If hugs were a second
I'd send you hours.
If love was water
I'd send you the sea.
If a friendship was a person
I'd send you me.


( autoria desconhecida )


* Extensivos a todos os Amigos, Leitores,
e Visitantes, os votos de um belíssimo 2006
são, porém e especialmente, dedicados a

Glória Maria Marreiros
Maria Eugénia Cunhal
Maria do Sameiro Barroso
Augusto Mota
António Simões
Sandro William Junqueiro
e
Inocêncio Príncipe.


Feliz 2006!


Gottfried Helnwein.
A song of Life. 1987.

o íntimo desígnio

Enfeitado de rosas negras e juncos selvagens, criados nas margens da madrugada, chegou o fim de ano, apressado e secreto.
Amanhã é sempre o hoje que disimulamos no rosto das pequenas emoções que vivem e desaguam no gesto da oferta e nos abraços que envolvem a saudação ao novo ano. É íntimo este desígnio das flores enlaçadas pela dádiva e que cintila nos laços e nos gestos que amarram o passado à memória do futuro.
Hoje é noite. E a memória vive por entre os juncos ( Juncus effusus ) e a natureza que enfeita de saudades ( Centaurea cyanus ) as margens deste nosso rio, das fontes até à foz.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.

29/12/2005

Zahra, A Moura Encantada de Leiria*

Neste Natal, o menino Jesus de seu verdadeiro nome, Fernanda Sal Monteiro, permitiu-me o contacto directo com esta pérola da literatura e da história portuguesas. São seus autores, Orlando Cardoso, no texto, e, Rui Pedro Lourenço, na ilustração. Um doce visualizado...
...Eclosão inevitável de um conflito com o tempo, vertigem e solidão de uma lógica, na qual, a pesquisa e a aventura permanentes, constituiram a razão de escrever e desenhar.
Processos em que - como aprendizagens - a permanência e a ruptura são comportamentos/conhecimentos que significam a evolução ou involução de um lugar - Leiria - contra a (in)diferença do mesmo espaço.
Caminho árduo, em que a itinerância da razão entre o circunstancial e o estrutural envolve um sistema de múltiplas dialécticas - o permanente e o novo, o universal e o particular, o erudito e o popular, o lugar e o tempo, como seus referentes.
Orlando Cardoso ou a superação dos limites da ordem histórica, a atitude do novo que se configura nos monólogos de Zahra, apostos à delicadeza quase "naif" dos traços, das ilustrações, onde o livro se manifesta como um princípio e uma "praxis", entre a expressão e as técnicas de escrita e ilustração, que Orlando e Rui, página a página, pré-estabelecem.
"Zahra, a Moura Encantada de Leiria" aparece-nos como um universo de factos históricos homogéneos, como um legado, cuja narrativa mantém o seu fluxo sedutor, o seu poder de encantar o leitor, insuspeito, apanhado nas malhas do tempo e da narrativa...
Fica-nos, ao folhear as 37 folhas desta obra, a emoção da visualização. A simplicidade e a beleza. Mas também uma certa tristeza. É do facto de "não vermos" ou de "não merecermos ver" que nasce a melancolia cultural. Ela existe e não pode ser vencida através de miragens de espelhos alheios. É um assunto de cada um de nós. Quando resolvido, o resto ser-nos-á dado por acréscimo.
Por isso, o meu encantado, visualizado e mouro reconhecimento.
À Fernanda Sal Monteiro, pela descoberta/oferta. Ao Orlando Cardoso pela história/escrita. Ao Rui Pedro Lourenço, pela imagística.
Gabriela Rocha Martins.
* Edições Arquivo. 3ª Edição. Apoio especial da Câmara Municipal de Leiria e Patrocínios da Escola Superior de Leiria, Ulmar e Valorlis.
Legenda Íntima 77.
Augusto Mota.

Sob os dedos da Lua

Os carneiros do sol anunciavam um novo ciclo,
tríptico e cântico da fábula azul da eternidade.
Na frescura dos jardins, imaginava o paraíso da dálias,
murtas e lírios,
recriado nos ciclos de luz, nos ciclos do sol.
Sob o signo de Capricórnio, havia rochedos brancos de sede
levantando-se, como uma rosa insurrecta,
sobre um vaso nacarado que iluminava o jade, a sombra azul,
as abelhas e as ametistas, entre as ruínas de Badedras,
Numeira ( as antigas cidades do Mar Morto ).
Chamavam-se então Sodoma e Gomorra,
era quando os homens alojavam perversos mistérios,
sob o seu coração e viver era olhar o fogo inclinado,
entre as colunas de sal.
Olhar para trás era impossível.
Era preciso deixar as paisagens desoladas e recriar a vida,
negra passiflora, sob os dedos da lua,
retirando a pele, camada sobre camada, e prosseguir,
pela sombra exausta,
porque as árvores refaziam a sua sombra milenar,
a verde folhagem.
A treva moldava a sua flor.
Lot adormecera já sobre as cinzas das cidades perversas.
E tudo fazia sentido: o mar, a morte, o Deus Bíblico,
a treva e o húmus nocturno.
Pelos vinhedos do céu, adivinha-se o mar,
e o silêncio descia, coberto de velaturas eternas.
E as luzes cobriam a terra que de novo se abria,
como um cálice nocturno,
cálido e fecundo, como um dia de Verão.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in "Idades Sonâmbulas".

27/12/2005

Legenda Íntima 85.
Augusto Mota.

Cocacolizando

Se eu fosse eleito presidente
De um país que não regula da tola,
Decretaria, como medida urgente,
Que os políticos bebessem Coca-Cola;
Da que tem cafeína, a mais potente,
A que tira o sono e os assola
Com um frenesim forte e fremente,
Que ao trabalho os prenda com firme argola.
E dele, nunca nenhum desgrudasse,
E vinte e quatro horas trabalhasse,
Para que entre nos eixos este país.
Até que saúde, ensino, e finanças,
Os hospitais, e o riso das crianças,
Assumam o rosto de um mundo feliz.
A. Inocêncio Príncipe, inédito.
Legenda Íntima 74.
Augusto Mota.

aliteração

Secretos segredos são suavemente segredados no sagrado e simbólico silêncio das sílabas sucessiva e sistematicamente soletradas como sustentáculo da supremacia dos sons supostamente sinónimos do supracitado simbolismo do silêncio. Semelhante sinonímia sintetisa a sinuosidade do sistema semiológico singularmente simplista subjacente à supérflua sinalética que supostamente sacraliza um sensacionalismo seguidista e sentencioso sem o sagaz sexto sentido servo da sensibilidade serena e sincera subentendida nos secretos significados subterraneamente substituídos por sinais singulares e simplificados mas simétricos de situações substantivas saboreadas no sagrado silêncio das palavras.
Que secreta repetição invadiu a planície do sonho onde germinam as palavras? Que rigor é este que só rega a raiz das palavras que se alinham nos regos por onde andaram as mãos das mondadeiras? Assim, estiolam as ideias na terra seca e gretada dos campos ensolarados! Assim, as palavras verdes e tenras murcham a meio da tarde, mesmo antes da pausa para a merenda! Talvez o pão e o vinho consigam novo ânimo para os sentidos das sílabas criadas entre a infância e a memória. Talvez o cheiro da fruta perfumando um quarto de dormir nos faça sonhar sobre a areia macia da praia, mesmo que tarde a maré-cheia dos sentimentos que guardámos para, um dia, lançar ao vento suão como se fossem papagaios coloridos presos ao fio invisível da pré-história das recordações.
Sagrada fruta a que se guarda no silêncio de um quarto onde dormem os perfumes secretos que simbolicamente invadem as mãos e os olhos! Não sabemos que supremacia é esta que as palavras subitamente nos impuseram. Nem sabemos o que louvar mais, se a gramática, se os olhos que acariciam os gestos e prolongam o sonho e o tempo!
E a dor? A dor alimenta o sonho e, como um rio tempestuoso, avassala as mãos que tremem e já não desenham o significante das palavras que, assim, se vão acumulando em traços sem significado, enquanto o olhar vagueia, tímido, pelos caminhos incertos do tempo.
Só o sonho segura as mãos trémulas para, com firmeza, lavrar os regos na planície onde germinará, sem ervas daninhas, a sementeira de todas as palavras que, no silêncio do olhar, havemos de segredar ao futuro.
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.

26/12/2005

Natal 2005.

Odes Brancas

Na noite gelada, os mitos nascem, o céu respira
uma tranquilidade imensa, os sinos tocam
e os anjos sussurram-me a imperfeição terrena.
Nela escrevo as minhas odes brancas.
No silêncio do mundo, as lareiras acendem-se,
as velas ardem e as estrelas cobrem as casas,
as árvores, as renas, as luzes de Belém.
Terna é a respiração das coisas.
Entre a neve e os murmúrios, os pinheiros imensos
acendem-se, o sol esconde-se, uma chama vela,
e a vida descobre-se, no frémito, nas nuvens,
num sorriso de lágrimas.
Talvez os anjos me soletrem, algures, na noite,
a fonte de luz e silêncio,
onde a vida passa, irrepetida e leve, nesse país,
aurora boreal, obscura,
cadência de música, segredo brilhante
de poemas antigos,
cantados em odes de Natal.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, 26 de Dezembro de 2004.

24/12/2005

Principezinho. Antoine de Saint-Exúpery.

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gabriela rocha martins, inédito, in " cantigas de diabo e mal dizer".

* dedicado a todos os nossos Visitantes, no natal de 2005.
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gabriela rocha martins, inédito, in "cantigas de diabo e mal dizer".

22/12/2005

Legenda Íntima 83.
Augusto Mota.

Navidad...

Fernando Silva dirigia el hospital de niños, en Managua.
En vísperas de Navidad, se quedó trabajando hasta muy tarde. Ya estaban sonando los cohetes, y empezaban los fuegos artificiales a iluminar el cielo, cuando Fernando decidió macharse. En sua casa lo esperaban para festejar. Hizo una última recorrida por las salas, viendo que todo quedara en orden, y en eso estaba cuando sintió que unos pasos lo seguían. Unos pasos de algodón: se volvió y descubrió que uno de los enfermitos le andaba atrás. En la penumbra, lo reconoció. Era un niño que estaba solo.
Fernando reconoció su cara marcada por la muerte y esos ojos que pedían disculpas o quizá pedian permiso. Fernando se acercó y el niño lo rozó con la mano:
Decile a... - susurró el niño -. Decile a alguien, que yo estoy aqui.
Eduardo Galeano.

21/12/2005

Fotopoema 46.
Augusto Mota.

o canto infinito*

o poema começa de facto aqui,
mas estou à espera, leitor, de ler nos teus olhos
as outras palavras que igualmente lhe pertencem;
aguardo a tua ajuda cúmplice,
como em tantas vezes,
em que, lendo os meus versos,
lhes acrescentaste a tua emoção:
um pedaço da tua alma, tal como da minha,
ficou lá a vibrar para sempre no corpo desses poemas;
e eles, cada vez que alguém, diligente, os lia,
vestiam nova roupagem, ganhavam nova forma:
pelas metáforas já gastas perpassava agora
o sopro das manhãs que de teu coração escorriam;
e eu, tantas vezes longe de ti,
sentia-te perto, arfando ao meu lado,
sempre que o teu olhar me percorria
verso a verso -
como agora, leitor, como agora;

não me faças esperar mais;
este poema que eu próprio escrevi
vai receber aquele que já vejo assomar nos teus olhos,
e os dois vão ser um só;
e cada um que o ler nele entrelaçará o seu,
e sílaba a sílaba, verso a verso,
não terá fim o nosso canto.

António Simões, inédito, Natal de 2005.
* Dedicado aos meus generosos leitores do Palácio das Varandas.
Isis nursing Horus.
Isis married Osiris and conceived Horus, the original Son of God. Her "Mother of God" role was later assumed by the Virgin Mary.

O Meu Natal... / dia 21 de Dezembro ( Solstício do Inverno )

... Às 12h 45m do dia 21 de Dezembro de 2005, começa o solstício do Inverno.
No Calendário Chinês, por exemplo, o solstício de Inverno chama-se dong zhi ( chegada do Inverno ) e é uma data de extrema importância porque se celebra a passagem do ano.
Estamos, no entanto, diante de um dia de grandes contrastes e de uma data que teve a sua origem na imperfeição do velho calendário, saído, como se sabe, das duas épocas do ano em que se registam, alternadamente, a mais longa noite e o maior dia.
As antigas civilizações, nos seus mitos solares, faziam nascer o deus Sol, no solstício de Inverno, no momento em que os dias começavam a crescer. A sua juventude era no equinócio da Primavera. No solstício de Verão, raiava em todo o esplendor da sua força, e, no equinócio do Outono, na regressão da idade, envolvia-se num escuro invasor.
Entre os povos do Oriente, o Sol nascente era representado por um menino no colo de uma Virgem celeste, sua mãe. Os Egípcios, em especial, celebravam, todos os anos, no solstício de Inverno, o nascimento de Horus, filho de Ísis, e, a sua imagem era exposta, num presépio, para adoração do povo.
A grande imperfeição do Calendário romano ( Numa ), apesar das intercalações periódicas, feitas pelos sacerdotes, de um mês completo de tamanho variável, no tempo de Júlio César tinha um atraso de 6o dias, pelo que Sesígenes ( astrónomo alexandrino ) foi chamado para refazer a diferença. Para ele, a duração do giro da terra em volta do sol era de 365 dias e 6 horas, dando origem ao ano de 365 dias, com reserva de 6 horas excedentes, para formar um tricentésimo sexagésimo sexto dia, a juntar, de 4 em 4 anos. Propunha, ainda, o começo do ano no solstício de Inverno. Todavia, César, para não ofender os demais habitantes do Império, preferiu que o 1 de Janeiro, do ano da Reforma Juliana, fosse colocado, não no solstício, mas no dia da Lua nova imediata. Ora, nesse ano, a Lua recaía oito dias depois do solstício de Inverno. Isso deu origem a que, no Calendário Juliano, o solstício correspondesse não ao 1 de Janeiro, mas ao 25 de Dezembro.
O dia 25 de Dezembro tornou-se, então, no novo Calendário imposto ao Império Romano, na data oficial da festa que comemorava, por toda a parte, o nascimento do Sol, do Horus egípcio, do Mirtha persa, do Phebo grego e romano, etc.
A Igreja, ao sentar-se no trono imperial, com Constantino, um século depois, aproveitou a festa do solstício de Inverno, do menino Horus nos braços da Virgem Ísis, para transformá-lo na festa de Natal que se comemora, até aos nossos dias, das mais díspares formas.
Mas não é disso que falo, neste Natal de 2005.
Imaginei um Natal humanitário, sui-géneris. Sem poluição, violência, racismo, guerras, sem exploradores e explorados. Um Natal em que as mulheres e os homens, independentemente do sexo, da cor, do país de nascimento, da religião, do tamanho, da força física, da inteligência, de credos políticos e ideológicos, dêem-se como irmãos.
Neste Natal não existiria gente dormindo nas calçadas, debaixo de viadutos, em bancos de jardins, pocilgas sem luz, sem ar, nem gente estragando alimentos que faltam a milhões de crianças e adultos, num mundo que teimam em proclamar de civilizado. Cheio de gente robotizada e alienada, vivendo em permanente conflito com o ser e o parecer, em que, cada um, disputa o seu espaço vital, sempre aperfeiçoando estratégias, cada vez mais sofisticadas, para suplantar os menos audaciosos e os mais dependentes.
Um Natal onde a felicidade de um fosse a felicidade de todos.
A Natureza deu tudo de graça aos homens, por isso ninguém pode negar a esse mesmo homem o direito à sua parcela, num mundo, que também é seu!
Será um Natal utópico, dirão! Mas um Natal humanista, por isso belo...
Edgar Rodrigues, pesquisador de História Social.

19/12/2005

Don Quijote de la Mancha / Parte I / Comemoración de los 400 años

" Don Quijote de la Mancha". Quadro de Carlos Alvar.

El Ingenioso Hidalgo...

En un lugar de la Mancha, de cujo nombre no quiero acodarme, no ha mucho tiempo que vivia un hidalgo... desses de lança no cabide, adaga antiga, rocim magro e galgo corredor (... ) A idade de nosso fidalgo rasava os cinquenta anos. Era de compleição rija, seco de carnes, enxuto de rosto, grande madrugador e amigo da caça (...) este sobredito fidalgo, nos passos em que estava ocioso - que eram os mais do ano - , era dado a ler livros de cavalaria, com tanto apego e gosto, que esqueceu quase por inteiro o exercício da caça e também a administração da sua fazenda(...) Em suma, enfrascou-se com tanto em sua leitura, que se lhe iam as noites lendo de uma assentada, e os dias de sol a sol; e assim, de pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro de maneira que acabou por perder o juízo.

( D. Quixote - Parte I, Cap. I )
Para mim somente nasceu Dom Quixote, e eu para ele: ele soube obrar e eu escrever, somente os dois somos um.
( D. Quixote - Parte II, Cap. LXXIV )
Por supuesto. Vale.

Miguel de Cervantes de Saavedra ( Alcalá de Henares, 1547- Madrid, 1616 ).

17/12/2005

Legenda Íntima 81.
Augusto Mota.

O Inconsciente

Estou sentado e chove. Não consigo parar de chorar. A dor é forte. É como se estivesse lá. Ali, no lugar onde sempre estive, a olhar para mim, a atormentar-me, a dizer-me:
Não valeu de nada. Não valeu de nada. Não valeu pois não? Se não é possível fugires? Se não é possível não teres medo?
Para lá do vidro, a manhã começa a cansar a noite que se esvai como o sangue num pulso cortado. O horizonte é cinzento e roxo. Todas as sombras se confundem, todos os animais e homens também. Esta casa tresanda a mofo. É pobre e triste todo o ano. Embora da janela da sala eu possa espiolhar o mundo. Chamar mundo a isto. Abrir a janela e respirar. Ver a cidade, os edifícios, o jardim, a praça, os entes que passam, os cães que latem, e imaginar que as gruas de cabeça de martelo são apenas girafas amarelas, debruçadas sobre as árvores, alimentando-se das copas em pleno exercício de liberdade.
A minha casa é igual a todas as outras casas, embora as suas paredes sejam pintadas de azul. Anil. É como se todas as vidas, todas as acções, humanidades e humidades, todos os medos e raivas, perpassem, também, por estas mesmas paredes e recantos, inflamando primeiro o ar, depois os pulmões, deste aroma nocivo e familiar a um bolor humanitário.
As casas são como esqueletos de almas. Porquanto os homens expiram, deixando-se morrer; enterram-se alcochoados ao caixão; são comidos por larvas, servem de proveito; e o que daqui sobeja são apenas ossadas, fotografias, tectos e paredes rebocadas.
A chuva entretanto cessou. Já não a ouço cair. A mão deixou de me doer. Já não a tenho outra vez. O vulto do homem corajoso, do homem sem guarda-chuva, do homem anónimo que enfrentava a intempérie vestindo um impermeável amarelo, também desapareceu.
Os vidros estão sujos. As ruas estão sujas. As nuvens espaçadas. Hoje é terça-feira. Primavera. Depois será quarta. Quinta e sexta. Sábado e domingo. E segunda outra vez. E terça. E terça. Sempre terça como um terço. E outra vez, Verão, Outono, Inverno e Primavera. E terça. E Primavera. E quarta quinta sexta. Verão Outono Inverno. E sábado.
E eu sentado. Já um homem que não consegue mais chorar.
Há coisas tão evidentes que não encontro palavras.
Sandro William Junqueiro, inédito, in "No Céu não há limões".
Legenda Íntima 75.
Augusto Mota.
1.
alguém ultra passou os limites
da decência
a carta de condução

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gabriela rocha martins, inédito, in "cantigas de diabo e mal dizer".

16/12/2005

Quadras & Quadros

Quadras & Quadros. "minha mãe amassa o pão".
Minha mãe amassa e sabe. Augusto Mota.
Minha mãe amassa e sabe
Que o pão vai ser partilhado -
Que em cada fatia cabe
O sonho nele amassado.

Compaginando

Quando o governo inteiro compagina
Prò país inteiro o que acha ser preciso,
Flébil parlamento palra em surdina,
Entra a humana razão em pré-aviso.
Mas quando alguém mergulha na tina
E esfrega o lombo com Dove abrasivo,
Pla nossa mente passa, sibilina,
A certeza de perder-se o siso.
Quando entre ais, uivos e dislates,
Com alface, cenoura, mas sem tomates,
O tempero falta à nacional salada;
Quando não há bom senso e nada presta,
A gente pergunta: "Que Pátria é esta?",
E, perplexa, a Pátria fica calada.
A. Inocêncio Príncipe, inédito.

12/12/2005

Demagogo

Candidatando

Quando os consabidos candidatos,
Plas ruas do país vão em passeio,
Falando ao povo, ternos e cordatos,
Sinto um fundado, lúcido receio.
Pelas suas palavras, plos seus actos,
Plo que já se disse e nunca veio
Trazer ideias novas, novos factos,
Num discurso que é mais um devaneio.
E ao vê-los passar em procissão
Pergunto: "Senhores, aonde vão?
O caminho é outro e é mais duro.
Subam, sim, a montanha da verdade:
Em perdido vale, a humanidade
Há milénios que espera o futuro".
A. Inocêncio Príncipe, inédito.

11/12/2005

Legenda Íntima 73.
Augusto Mota.
Quem não guarda dos jardins a grata recordação
das grinaldas com que um dia as mãos,
secretamente, louvaram as flores
vermelhas do desejo?

Fulvo Esplendor

Descobria a História, deusas portadoras de vida,
Néftis, a Núbia, templos do Neolítico, um capitel romano,
o ouro antigo.
Tinha desasseis anos.
As nuvens no céu perfilavam-se, como imaculadas vestais.
No jardim, as dálias e as glicínias abriam-se.
Pela primavera, as laranjeiras floriam, brancas,
perfumadas, descobriam a sua doce letargia.
O pólen acumulava-se.
Mas ainda não chegara o tempo de me desdobrar
em páginas manuscritas,
apenas me devorava a paixão sôfrega e atenta dos versos.
E interrogava-me, nesse fulvo esplendor, à beira do vazio.
Procurava o mar, o infinito.
Arqueada no céu, a deusa Nut dava forma ao éter,
o seu corpo, como um sopro nocturno,
recamado de estrelas, invadia a memória,
trazendo um rasto incolor de íbis, chacais,
mandrágoras, lótus, perfumes da eternidade.
Dividida entre as luzes e os perfumes, desenvolvia
o fulcro e as narrativas, entre todas as paisagens,
onde se enleavam os barcos, as necrópoles.
Descobria Néftis, a Núbia, e os escaravelhos negros
pairavam sobre as sombras, refazendo o azul,
a perfeição,
onde me encontrava com a harmonia do mundo.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in "Idades Sonâmbulas".

zig - zag zag - zig

a morte não é a maior perda.
a maior perda é o que morre dentro de nós enquanto vivemos.

10/12/2005

Fotopoema 43.
Augusto Mota.
com os juncos

Elas crescem, as crianças,
Crescem com os juncos,
Com os mastros,
Crescem no meu coração
esburacado,
Só as crianças não morrem.
E os gatos.

Eugénio de Andrade.

Alavancando

Alavanquemos, Pátria adormecida,
Sinergias que são incontornáveis -
No rio revolto que é a nossa vida,
Agilizemos a fluidez dos sáveis.
Como eles, ó gente empedernida,
Naveguemos as águas mais potáveis,
Elencando a escolha que é devida,
Numa terra onde há poucos notáveis.
Demos-lhe a verdade que tanto tarda,
E numa asa ampla de abetarda,
Voemos pelos céus, sem onde ou quando.
Façamos briefings, outsourcing até.
Multipliquemos por mil a nossa fé,
Alavancando, sempre alavancando.
A. Inocêncio Príncipe, inédito.

04/12/2005

Francis Bacon
4.
não sei
desenhar
s
a
n
i
n
e
m
bem comportadas
s
a
minhas
meninas
erpmes
gostaram
d
e
pular
.a cerca.
gabriela rocha martins, inédito, in "cantigas de diabo e mal dizer".

Quando Cheguei a Casa

Quando cheguei a casa
encontrei no meu quarto um marujo
que aportara num bote ao meu guarda-vestidos
e se esforçava por descer, -
mas não sabia explicar por que ali se encontrava.
Ontem surpreendi um rebanho de cabras
que pastava no meu tapete.
Ante-ontem um chinês
que provava a minha roupa e afirmava
não ter dado com a escada.
Se amanhã um bando de gralhas enfiar pela janela dentro,
tal não será mais estranho do que se depois de amanhã
um elefante me pedir para o lavar.
Coisas assim acontecem todas as noites.
Vou procurar outro quarto.
Christoph Meckel.
Legenda Íntima 47.
Augusto Mota
Quando a safra corre a contento
ornamentam-se os altares da
fertilidade com as espigas
douradas da esperança.

meu amor

tenho medo do vento:
abre-me teu corpo -
quero ficar lá dentro
um pouco.
tenho medo do mar:
deixa-me esconder
nas dunas de teus seios
até ele abrandar.
tenho medo da noite
que agora principia:
encharca-me o rosto
na luz de teus olhos,
para que seja sempre dia.
tenho medo de ter-te
só entre estes versos
e em mais lugar nenhum -
tenho medo, meu amor,
de não ter amor algum.
António Simões, inédito, 2003.

01/12/2005

Quadras & Quadros. "minha mãe amassa o pão".
Minha mãe amassa e sonha. Augusto Mota.

Minha mãe amassa e sonha

Com a paz de um mundo novo,

Sem essa vida tristonha

Que era a vida do seu povo.


A que trago dentro

Imagino-te à porta, à minha espera,
Numa casa que é só pensamento -
Venho de longe, duma outra era,
Mas tu vives para além do tempo.
Tu és a que foste, a que já era
Antes de o meu próprio nascimento,
E que minha alma sem saber trouxera
Nos sonhos que eu à noite invento.
Teu avental feito de ar ou linho,
Preso à linha grácil da cintura,
Os braços puxando-me para ti.
E na luz desses olhos adivinho
Uma emoção que tudo transfigura:
Foi sempre e só contigo que vivi.
António Simões, inédito.

Ofereça neste Natal...

...aos Familiares e Amigos.
À venda em qualquer Livraria.

Augusto Mota - Um Sujeito (In)determinado

Nos últimos anos tem sido divulgado em Portugal um tipo de prosa diferente da que já conhecíamos. Trata-se da "mini-ficção", muito em voga nos Países de língua castelhana. É, diz Alberto Pimenta, "talvez nessa forma que este espaço cultural melhor acolheu o pós-modernismo, com a sua desconstrução dos grandes fôlegos e das grandes teses; os tempos tornaram-se também avaros de si mesmos, e a rectórica, como se sabe, está desacreditada".
Augusto Mota cultiva esta ficção breve com a mestria que lhe é própria, alicerçada na vasta cultura acumulada ao longo de uma vida diversificada por múltiplos interesses. A sua arte e saber não se esgotam na pintura, na banda desenhada, na poesia, na fotografia, na sensibilidade ecológica e no prazer das pequenas coisas que cultiva como "jardineiro-filósofo", na feliz definição de Alberto Pimenta, no Vestíbulo deste livro.
"Sujeito Indeterminado" assinala o regresso de Mota à escrita impressa, com um "breviário de textos brevíssimos", alguns dos quais já conhecíamos da navegação na Internet. Ainda bem que o fez, porque não há nenhum suporte que chegue à maravilha da palavra impressa sob a forma táctil de livro.
"Perturbador" é a primeira constatação que retiro destes 65 textos que instalam a desordem no pensamento do leitor incauto. Desestruturadores, eles lançam pistas para novas e divergentes leituras, além das que lá estão visíveis em prosa sugestiva e irrepreensível.
Prosas desconcertantes, pois, apresenta-nos este autor leiriense.
Nada melhor que acabar esta nota transrevendo um texto ao acaso: "Era fã da Bo Derek e tinha grande experiência do ofício. Podava as árvores ao som do Bolero de Ravel. Por isso os frutos saíam tão suculentos e apetitosos".
"Sujeito Indeterminado", livro que se devora num fôlego único, só pode ser surpresa para quem desconhece as virtudes do autor, igualmente responsável pelo belo aspecto gráfico deste "breviário".
Por agora o tempo é de fruição do que temos nas nossas mãos.
Orlando Cardoso.

30/11/2005

Legenda Íntima 61.
Augusto Mota.
Quando a tristeza é muita dizemos nossas
as lágrimas da própria natureza.
33.
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a mulher pintav a

o

cio

n

e

l

si mE

.pedra.
gabriela rocha martins, inédito, in "cantigas de diabo e mal dizer".
ERECTO, O
H
O
M
E
M

CAMINHA CAMINHA
E A SOMBRA vai Rod
ando
Ro
dan
do com o des andar do
sol
pequenina ao Meio - Dia
Quando o ocaso se adivinha
Cresce TANTO, TANTO...
Alon GA, A LON GA...
Fica MAIOR do que o sonho.
Fica MAIOR do que o H
O
M
E
M.
Vem a noite, o H
O
M
E
M
Tom ba.
CHU...CHU.....Chu...
O HOMEM dorme.

Glória Maria Marreiros, inédito.

29/11/2005

Margarida.
Fotografia de Myriam Ach'or

( requiem )

Ai, esta voragem dos dias! Este perpétuo veneno em minhas mãos, dúcteis, insidiosas, mas alegres pelo orvalho de tudo o que fortaleceste em mim! O ritmo agora é outro na verticalidade dos dedos. As unhas andam mais polidas pelas ânsias da noite e debato-me e arranho-me por os olhos não alinharem as perspectivas todas com os teus. Mas isto só por ausência física. No resto sou fraterno em minha dádiva surda, em meu calor que compartilho na mesma com o espaço que devias habitar. Nem há desperdício porque te sei. Por isso, tudo é natural e a emoção disfarçada da partida e da chegada é sempre uma viagem só para os olhos.
O minuto da separação é pálpebra que se fecha para sonhar a realidade. O apito da locomotiva, por vezes, é que tira sabor às coisas. Mas o beijo leve e quente no cais da estação é ainda o mais nítido regressar à realidade. É um outro acordar para melhor dormir sobre as recordações.
Augusto Mota, inédito, in "O Artefício da Loucura", 1964.

27/11/2005

Algemas.
Fotografia de Brian Spade.

No me olvido del vuelo

He quebrado las máscaras
he transitado
sobre mis proprias muertes
Me he visto transmutando
de gaviota a paloma
de halcón a águila
He comido mis vísceras
regresado en mujer
Me encuentro parada
en mis dos piernas
transito
el último tramo del camino
aún guardo las alas
en los rincones
No me olvido del vuelo.
Ana Mayol, inédito, Argentina.
Frida

O Canto, A Reminiscência

A música tomba nos precipícios de Wagner, anda sobre as letras
sombrias, liga as redes, o transe, os monumentos,
os remos e as rimas genesíacas,
a água ardente rumando, entre a proa e a popa, ao ocidente,
ao espírito de Deus, às nuvens, à neve e ao mercúrio
- um barco deslizando.
Sempre ouvi falar da cabeça vazia, da vertigem
e do corpo que se despenha, em sereníssimos acufenos,
sobre um branco alfabeto que movimenta o sono,
revolvendo as sílabas roxas, como entranhas,
auras de pedra.
Algures, um silêncio inventado, outra forma de existir,
o corpo hesitante escrevendo o canto, a reminiscência.
Por vezes, tenho pensado que poderia escrever o meu lugar,
quando inóspita era a matéria,
na magia geológica de estratos simplificados,
vazando as rosáceas, o vazio entre as letras.
Porque a terra ardia, pelo seu centro doloroso, sobre pálpebras,
orquestras negras.
E eis que chego à imagem exacta do meu rosto,
ao terceiro acto da Valquíria.
A minha vida era redonda, como uma papoila,
rompendo todos os textos.
Tremia de medo.
A relva tinha joelhos tímidos, os meus olhos voavam.
Eu era uma chama humedecida exaltando o sangue
e os ritmos ocultos, o corpo, os meteoros,
deslumbrados arco-íris, sonhos petrificados
e a matéria luminosa
de todas as metamorfoses.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in " Idades Sonâmbulas".

26/11/2005

Legenda Íntima 70.

Augusto Mota.

Quando se pescam novas sensações nas águas

calmas do prazer, a própria natureza se

diverte a encorajar o êxito da faina.

( sensações )

Loucura, sábia loucura esta que me arrebata todo, mas todo, para os minutos em que me sinto respirar sem mim. Invejo os átomos que se escondem nas sensações, nas agora estúpidas sensações que não atravesso com o olhar.
É isso, sou um homem permanentemente desacreditado. A história e a glória de minhas mãos pertence sempre ao fracasso. Vivo nem sei como. Tenho os olhos a ocidente e o sexo a oriente. Assim não sei como governar os segundos e os anos. Vou desistir de viver. É que não arranjo maneira de fazer de tudo isto um diálogo permanente com a sensatez da minha própria razão.
Dói-me tudo hoje. Tudo. O norte onde não habito, porque estou no sul. O sul que não habito, porque estou no norte. O sexo e os olhos é que parecem estar parados. Fui vítima daquilo que não me deram: a unidade de mim quando jovem criança. Deviam ter-me prendido a imaginação e os dias às pernas das mesas. Fiquei demasiado senhor e desconfiado daquilo que tocava. Depois dei nova grandeza ( outra grandeza ) àquilo que queria distante, ou sabia distante e queria perto das mãos. O mundo revelou-se-me demasiado desfeito, demasiado inoportuno para o que eu já sabia. Entrei cedo demais na música das flores e no círculo dos segredos mais íntimos do universo.
Tudo se reduz, afinal, ao relativo de nossas sensações, ao tempo exacto de nossas sensações. E como gostaríamos de as prender, ou matar, quando elas se impõem à memória com uma permanência exacta, viva, real, quotidianamente exasperada.
Assim concluímos tanta coisa errada!
Augusto Mota, inédito, in "O Artifício da Loucura", 1964.

150 anos depois. A Eça de Queirós, com um dia de atraso...

Em 25 de Novembro de 1845, nasce na Póvoa de Varzim, José Maria Eça de Queirós, considerado como um dos maiores romancistas portugueses.
Após o curso de Direito, ingressa, em 1872, na Carreira Diplomática.
Foi, inicialmente, colocado em Cuba. Mais tarde, em Inglaterra. Segue-se o cargo de cônsul, em Paris( 1888), cargo esse que desempenhará até à sua morte.
As primeiras obras, publicadas em Portugal, foram ensaios e relatos curtos, caracterizados por uma fortíssima ironia e uma fantasia macabra. Mais tarde, integrará o grupo de intelectuais portugueses, impulsionadores das reformas artísticas e sociais, característica do realismo e naturalismo literários. É, durante os seus anos como cônsul, que Eça de Queirós escreve as suas obras mais famosas, nas quais denuncia os males da vida portuguesa contemporânea. Por exemplo, em "Os Maias", considerado o seu melhor romance, e, escrito em 1888, Eça descreve a degenerência de uma família, como símbolo da decadência da alta burguesia portuguesa, e, "A Cidade e As Serras" ( publicada, postumamente, em 1901 ) relata a sua nostalgia pelas belezas rurais portuguesas.
Faleceu, em Paris, em 16 de Agosto de 1900.
Em 1901, Carlos Loures entrevista Eça de Queirós, em Paris....
- A França e a sua cultura influenciavam fortemente os políticos e os intelectuais portugueses. Aliás, é a sua fórmula: Portugal é um País traduzido do francês vernáculo. Passados tempos, alterou essa formulação: Portugal é um país traduzido do francês em calão.
- É verdade. E se a primeira fórmula, mais subtil e exacta, colando-se à realidade como uma pelica, foi acolhida com secura e impaciência, a segunda foi recebida com reboliço, e rolou de mão em mão como uma moeda de ouro bem cunhada e rutilante. Já a encontrei brilhando num almanaque, numa comédia do Príncipe real e num sermão.
- A que atribui essa diferença de acolhimento?
- Quem sabe? Talvez porque a ideia da vernaculidade desagradava, lembrando pedantismo, caturrice, a Academia das Ciências, o pingo de rapé, outras coisas antipáticas. Enquanto a ideia do calão nos sugere, sobretudo a nós lisboetas, chalaça alegre, bacalhau de cebolada, Chiado, Grémio, pescada frita nas hortas, em tarde de sol e poeira, e outras delícias, de que eu, ai de mim, estou aqui privado!
....

Exercício de Assimetria

Sorriste:
Sorri.
Partiste:
Fiquei só.
António Simões, inédito, 1970.

20/11/2005

Vogais e Consoantes no Carnaval das letrinhas*

Ontem à tarde, apareceu, dentro da minha carteira ( a vantagem de gostar de grandes sacos ), este tesouro...outro que não resisti à tentação de ler, de imediato, e sem fôlego. Mas, como sempre acontece com as minhas leituras, depois do espanto inicial, volto para descobrir os tesouros interiores. Os meus e os dos outros. E descobri-os na escrita de uma Senhora das Letras - Glória Maria Marreiros - a eterna menina, aquela que gosta de chamar meninas às outras... Na doçura de um jardim de muitas folhas a que a Autora chama "Livro", as "meninas-letrinhas" a,e,i,o,u falam entre si, naquele linguajar muito próprio das crianças... e brincam com o significado das palavras, num trocar de sentidos, a que só o sentido da Glória consente - "fixe, fixe" - são termos usuais num rodopio que nos reporta às traquinices da nossa infância. E é, nos sótãos das nossas infâncias, que a Autora vai buscar as máscaras que as suas letras-crianças usarão -
Nós somos cinco letrinhas
Todas chamadas vogais
Sem nós não há palavrinhas
Nem histórias nem carnavais!
- todavia, a estas cinco letras, outras 18, "quais soldadinhos de chumbo", as consoantes, se juntarão, e, ao som do canto dos pássaros que, também habitam no livro-jardim, participarão em alegres brincadeiras.
E o encanto maior deste livrinho alcança-se quando, duas Crianças, Leitoras de verdade, se juntam no coro do Alfabeto...
Nós somos muitas letrinhas
- nenhuma letra é igual -
no livro muito certinhas
brincamos ao Carnaval.
...
"O LIVRO-JARDIM fechou-se
e...
o meu conto acabou-se"
Mas não. O conto não se acabou. Fechou-se para continuar no nosso imaginário... por ele, obrigada, Glória!
Nota de rodapé - Esqueci-me, empolgada que estava na releitura e escrita, de fazer referência às ilustrações de Simona Traina...é que esta menina também sabe brincar ao faz-de-conta, e, soube acompanhar, com crescente ingenuidade, o imaginário de Glória Maria Marreiros.
Razão tem o Eduardo Prado Coelho quando nos fala de casos de amor...
Gabriela Rocha Martins
__________________________________
* O livro, com a chancela da "Campo de Letras" pode ser adquirido em qualquer Livraria do País.
Legenda Íntima 63.
Augusto Mota
Todas as peregrinações, tanto as interiores,
como as exteriores, quando levadas
a bom termo, são autênticos
ordálios que procuram
satisfazer o espírito
e apaziguar
o corpo.

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / Democracia da Leitura

Que significa ler? Etimologicamente aquele que lê é aquele que escolhe, que vai colher na árvore dos textos os frutos escolhidos: ler é eleger, escolher as palavras que emergem do fio do discurso, dar-lhes o brilho e a cor que lhes convêm, e por isso todo o leitor é um eleitor, e não há leitura sem uma política da leitura, e não há verdadeira leitura sem uma democracia da leitura.
"Democracia da Leitura" - utilizei esta expressão no filme Conversa Afiada de João Botelho, onde os textos de Pessoa e Sá-Carneiro eram lidos, não por leitores profisionais, mas por gente que não fazia profissão de saber ler, e por isso eles hesitavam, eles, os leitores incertos, tropeçavam nas palavras, embrulhavam as sílabas, mas por isso mesmo, neste modo vulnerável de desemaranhar os textos, eram cada um deles o cidadão comum, anónimo, vulgar, que exerce o direito de eleger, o direito de ler. Tratava-se assim de um acto colectivo ( mas "ler" é também "reunir", "coleccionar", "fazer a colecta" ) em que a comunidade se fazia à volta do isolamento da leitura, coro implícito e silencioso, ou ruído de fundo nos corredores dos conventos medievais, quando a leitura de cada um era ainda uma leitura em voz alta e o coro se fazia na diversidade dos textos e dos corações ali recolhidos ( isto é, lidos e relidos por Deus na eterna recolecção dos textos divinos ).
E foi dessa leitura que cada um ganhou o seu estatuto de "intelectual", aquele que tem a capacidade de compreender, porque é capaz de "inter-legere", isto é, de escolher naquilo que há para ler o que vale a pena ser lido, e escolher no atropelo dos textos o que vale a pena ser retido para dar aos textos o sentido que eles têm, ou melhor, esse sentido que eles podem ter, porque ler coloca-nos sempre no futuro de cada texto: o leitor escreve para que seja possível. E assim cresce a inteligência de cada um na inteligência de todos, colocando-se o intelectual no seu lugar de ser orgânico, elemento de um corpo que aumenta ( o autor é aquele que aumenta o mundo e que nisso provisoriamente se autoriza ) em sentidos e sentido, preso da paixão do inteligível, disponível para o processo da inteligência comum, e no entanto sempre privada, sempre no círculo da leitura, sempre na luz do "abat-jour", murmuradamente como diz o vice-cônsul no India Song: "o amor é a inteligência de ti" - dessa mulher desconhecida que dança até de madrugada.
Havia um termo para "amor" que era "dilectio" e dizia-se "amante dilecto", o amor que se tratava, entre aquele que diligentemente escolhe um ser, um objecto amado, e uma pequena zona do mundo, incisão ou cicatriz, que passa a ser o lugar, o corpo, o olhar, o gesto ou o ciciar da pele que se tornam, entre todos os possíveis, os que se dizem predilectos. Trata-se então de não negligenciar o que se elegeu ou recolheu, e criar em torno desse amor a sua lenda, isto é, o corpo de palavras a serem lidas como um mito, lenda e legenda de um encontro, de uma imagem, de uma fotografia, o fotograma dilecto, a fotografia delida, a fotografia lida e relida na gramática da sua luz, no drama da sua memória, na elegância de um olhar silencioso, na repetição do nome que a nomeia.
Eduardo Prado Coelho, in "O Leitor escreve para que seja possível", Janeiro de 2004.

18/11/2005

Legenda Íntima 67.
Augusto Mota.
Não é conveniente desnudar completamente
as raízes de todas as emoções. É que há,
no subsolo de cada personalidade,
um infindável e ínfimo sistema
radicular que protege e,
secretamente,alimenta
o tronco visível do
nosso existir.

CASA, PROCURA-SE

Ando procurando casa,
Quero mudar-me este Verão -
A alma já me extravasa:
É pequena esta morada
Para tanto coração.
Vou visitando os olhares,
Em busca de novo abrigo -
Se comigo te cruzares,
Prende-te aos meus vagares
Nesta via que prossigo.
Deixa que na tua pele
Minha alma pouse os lábios -
E que esse beijo tão breve
Pra dentro de ti me leve
E acalme os meus cuidados.
Tua alma é arejada,
Cabem lá as minhas dores?
Vou aí fazer pousada,
Se tudo nela me agrada
E paciente tu fores.
Minha alma às vezes acorda,
E não tem hora nem dia,
A velha dor sempre nova,
E dentro da dor soçobra -
Queres esta companhia?
A de um velho coração
Que anda procurando casa -
Que quer outra habitação,
Com alicerces no chão
E por telhado uma asa?
Mas onde esta dor profunda
Possa caber à vontade -
E encontrar em ti ajuda,
Que a dor dilua e cubra
Da ternura que te invade.
Queres este velho poeta
Que continua menino
E na alma sempre inquieta
A dor do mundo projecta,
E a outra, do seu destino?
Dá-me só a tua mão
Pra que a ternura se acenda -
Teus olhos logo dirão,
Se avanço na instalação -
Depois, discute-se a renda.
Posso pagar-te em poemas?
Um por dia chegará? -
Só quero que tu entendas
Que melhores pagas ou prendas
Do que as palavras, não há.
Nada mais tenho pra dar-te
Do que esta escrita empenhada -
Com maior ou menor arte,
Contigo tudo reparte
Meu estro em tua morada.
Mas se ninguém me quiser,
Se minha alma é excessiva,
Há sempre casa e mulher
Onde o poema estiver -
Onde ele vive, que eu viva.
António Simões, inédito, in "Poemas Circulares: Moradias e Navegações".
Vilaverde.
Fotografia de Nelson d'Aires.

agosto

Recebeu o troco
e levantou-se lentamente tão lentamente quanto lhe era possível a fim de retardar o seu regresso ao calor da rua
Não é que lá fora estivesse melhor Antes a inércia de mudar de posição e a incerteza do tempo de espera
Acendeu um cigarro Começou a descer a rua enquanto as pessoas à sua volta obrigavam-no a pequenos desvios ávidas da rotina do dia a dia Não tinha porém importância porque ele descia expectante E só por isso achava graça a essa fúria formigal que levava os outros a chocarem consigo cheios dessa importância de correrem para o tédio que sabia domesticamente enfadonho
A praça estava cheia Parou frente aos isqueiros - os mesmos de sempre que há anos se mantinham no mesmo sítio - Olhou os títulos dos jornais Verificou que na esquina da Loja das Meias ainda lá estava a camisa que gostaria de comprar Seguiu em frente parando em cada montra cumprindo o ritual de ver o já visto deleitando-se na confeitaria dos primeiros anos do séc. XX - nos bolos e na montra - olhando as armas que nunca pensaria usar vendo de soslaio o imobilismo de alguns comerciantes Virou à direita e subiu mais uma vez a rua de desesperantes esperas e desesperas Das escadinhas à direita saiu a miúda Hesitou em dar-lhe a importância do costume mas o estado de alma permitiu-lhe um outro olhar Valeu a pena As sandálias gastas As pernas soberbas - bem feitas - mesmo bem feitas Aliás todo o corpo era bem feito não necessitando da saia apertada nos sítios errados Ajustou o seu passo ao dela e sorriu à mudança de ritmo de andamento Depois passaram a trocar os olhares nas montras e entre a brincadeira e o jogo de acelera e trava de montra-descarada-montra-impessoal foi-lhe descortinando o rosto de menina que não teve tempo de brincar as rugas que lhe haviam chegado o peito que terminava num estômago apertado por um cinto Pararam no largo Olharam-se OLÁ-OLÁ e aquele longo olhar contou todas as estórias As contáveis e as outras Despediram-se como amigos O calor continuava em todos os lados mesmo estando à sombra e sendo 19h30m Começou a descida para casa É notável como a cidade pode oferecer o passeio conforme as necessidades Se tivesse seguido a rua dos eléctricos além de já ter chegado há muito tempo não teria sido crítico de moda e de arte nem teria pena da amiga que arranjara Pior Tinha-se impacientado com a espera Subiu ao nono andar A casa estava naturalmente fresca e foi bom abrir as janelas para deixar entrar o sol e o rio Luz Água Silêncio Acendeu um novo cigarro e correu para o duche Deixou a água correr ao longo do corpo Primeiro sem ordem Depois em escolha metódica Curva a curva Dos pés à cabeça que inclinou em ângulo certo de modo a incidir no pescoço no peito no estômago nas ancas nos pés De novo a repetição dos jogos de água e os sentidos que se apuram Esqueceu a passagem do tempo Mas não a suficiente para precisar de um pouco de música Agarrou a toalha e serviu-se de wiskhy Estendeu a mão Tirou o 3º andamento 5ª sinfonia de Malher e deixou-se ficar quieto oitava a cima garganta a baixo Brincava com os dedos e com o copo quando o telefone tocou O ciclo fechava-se e ele viu sentada a seu lado a imagem que guardara o dia inteiro Chegava de modo breve e seguro com aquele sorriso nos olhos que dizia
é bom amar
Atendeu
naquele estender de mão cingir de corpos - curiosamente mesmo nos mais íntimos encontros mesmo nesses nunca haiam assumido qualquer compromisso - e no falar das generalidades diárias
era bom ouvi-la
Mesmo quando não tinham coisas novas a dizer ficavam a recordar os instantes de ontem só pelo prazer de amar Era noite escura quando se despediram Desligou o telefone levantou-se vestiu-se comeu qualquer coisa e saiu
Ana esperava-o A rotina O dia a dia O tédio
gabriela rocha martins, inédito, "quando a poesia se veste de prosa".

17/11/2005

A HORA AZUL

Ilustração de Augusto Mota,
in "Diálogo", suplemento de cultura,
letras e artes do "Diário Ilustrado",
9 Julho 1957.