31/05/2005
um desafio a quatro mãos
fotografam.
duas, as femininas, não pintam, não desenham
porém, escrevem.
Augusto Mota, o masculino,
Gabriela Rocha Martins, o feminino,
desafiaram-se a brincar
experimentaram
desgotaram.
apagaram
recriaram.
eis, em sequência, os quatro primeiros fotopoemas.
definitivos?
talvez não.
antes
em contagem decrescente
até .ao ponto zero.
30/05/2005
De noite, todos os gatos são pardos/Migração Nocturna
De escrita efémera, o texto de hoje, reporta-nos aos pavores nocturnos, próprios de todo o homem/mulher, já na fase adulta.
Mas falar de pavores nocturnos é, de certo modo, reconhecer todos os minutos em que perdemos o fio da realidade e nos achamos enrolados no lençol do medo da lucidez.
De dia, no pino da claridade, enfrentamos o disfarce, sacudimos o cobertor da memória e saímos para o largo do esquecimento.
E sofremos. Porque nenhuma mentira é permitida.
O verdadeiro lado que trazemos colado à pele e que só no escuro se revela.
Não é a culpa. É a ausência dela.
De noite, somos capazes de atingir um certo estado de pureza.
Não há jogos. Não há tréguas. Apenas nudez.
Perdemos origens, destinos, fronteiras.
Somos desertos.
Poder-se-ia chamar memória, ou regresso ao ventre materno, a encruzilhada nocturna.
Mas seria sempre um recuo, uma ponte para a doce inconsciência - a ausência de padrões.
É o ponto zero de um espírito em completo desassossego, perto da lucidez.
Nenhum afecto resiste ao peso de uma insónia.
Só uma espiral lenta e pesada. E aí perdemos a exacta medida do efémero.
É pouco o que nos resta para sonhar.
Inventamos o dia, o emprego, as tarefas do quotidiano, as pequenas trapaças, o último filme, algo que nos dê consistência, significado, tudo o que sirva para apagar a memória de quem somos quando não somos alguém.
De noite, todos os gatos são pardos.
Pardos são os dias quando os deixamos fugir na borda da areia.
Pardos somos nós quando desistimos de procurar o fantasma que herdámos no momento de fugir à claridade.
E, na expectativa dos dias, entragamo-nos ao silêncio da noite....
...emigrantes
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23h32
Nonsense.
a partir de agora procurem,
À Vida
vermelha, de rio que estua.
Sou recusa: és caçador.
Persegues: eu sou a fuga. Não dou minha alma cativa!
Colhido em pleno disparo,
curva o pescoço cavalo
árabe
e abre a veia da vida. Marina Tzvietáieva ( 1892-1941 )
26/05/2005
IV - Afeganistão. Paralelo D
Exame
o limite dos meus encantamentos.
Só em raros momentos
de inspiração
eu consigo o milagre de um poema,
teorema
indemonstrável pela multidão. Mas é desse limite que me ufano:
ser humano
e poeta.
Humildemente,
com toda a paciência da terra,
com toda a impaciência do mar,
aguardo o transe, a hora desmedida;
e é o próprio rosto universal da vida
que se ilumina,
quando o primeiro verso me fulmina. Miguel Torga
Verdadeiro Criador Não Exige Recompensa do Exterior
25/05/2005
Teoria
Não se é duquesa
a cem metros de uma carruagem.
Estes, então, são retratos:
uma antecâmara preta;
uma cama alta protegida por cortinas. Isto são meros exemplos. Wallace Stevens ( 1879-1955 )
Ficção Suprema
24/05/2005
Cantiga de Tereza - 1º Prémio do Concurso Litterarius, 2004
Amor
Em Riachão - lugar do ermo e do sem fim - o vento tem outros dizeres, cheios de um poemar. E isso que aqui vai, é recontar humilde o dizer de Seu Lourival da Barberaia Nova Aurora: o homem de todas as sabenças. Esse recontar é um nunca-tão-bom-quanto. É do soprar daquele, palavra redita na imensidão da lembrança.
21/05/2005
Pouco a Dizer (II)
Estou a ser assassinado de encontro às musas.
Não contentes, querem ainda secar
a minha fonte de inspiração. Só que essa eles não sabem onde fica.
Onde corre o inextinguível fio, em que vaso
se lança, o som harmonioso que faz,
tudo isso ignoram.
Sabem que existe, que corre, essa água sublime.
mas não sabem mais nada. E é essa ignorância o que os humilha infinitamente... Mário Máximo, in Prima Materia
Pouco a Dizer (I)
Estou a ser assassinado de encontro às musas.
levantaram muros
para impedir todas as viagens aladas
que há dentro das minhas paisagens interiores. Sei agora que continuarão a fazê-lo até ao fim
do meu mundo secreto. Mário Máximo, in Prima Materia
"Cântico"/( Homenagem a José Régio )
quando o fruto se abriu em semente
quando a noite rasgou o ventre de minha mãe
trazia
o vagido fechado das primeiras pancadas
os pés abertos no cordão que me cortaram
contei
cada segundo que passava do acto em que nasci
( como se adivinhasse que
correriam sobre os meus olhos
pisariam os meus ossos ou
cuspiriam a minha carne crua )
corri
pendurada nas hastes do tempo
pelos lagos da minha infância
suguei
o tutano viscoso das palavras
o sentido da REVOLTA e
guardei
as minhas ambições nas prateleiras
duma biblioteca quadrada
assisti
à dança macabra das freiras
enfeitadas com colares de espanto
saí
de mim
dos compêndios riscados com borronas
das sebentas bentas pelos lentes e
vomitei de nojo
corri
as ruas duma cidade infecta
desfraldei
bandeiras rubras de sangue
soltei
temporais de vento norte
descobri
o amor mecânico das prostitutas
abri
os olhos no sono dos homossexuais
pisei
as mãos dos mortos
amei
com dedos carregados de ternura
precisei
um mundo de beleza e
senti
no corpo
o gosto acre da derrota
descansei
meus olhos sem lágrimas
devorei
livros, teorias, ensaios, filmes
vivi
as guerras, as bombas de napalm
percorri
caminhos de Mao a Ho-Chi-Min
embosquei
a raiva na morte de Che Guevara
alvorocei
cidades condenadas
ensinei
crianças famintas de cultura e fome
vi
meu corpo caminhar sem medo
minha boca falar por si
minha razão tomar razão
meus pés andarem sem bengalas e
meus braços sem muletas
despi-me
rindo com todos os dentes
no pudor dos precocemente enterrados e
FIZ-ME.
gabriela rocha martins
Cântico Negro
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem:"vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
( Há, nos meus olhos, ironias e cansaços )
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali... A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe. Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis:"Vem por aqui?"
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada. Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- sei que não vou por aí! José Régio.
O rosto dos gestos
A Morte da Gaivota
Figura alada Súbito o estampido
e da nuvem álacre
uma ave espavorida se desprende
balouça
oscila
nas transparentes mãos do vento
branca pluma de argila Um grito atónito acompanha
sua lenta descida E sobre as águas cai
frágil recordação do frémito das asas
a gaivota ferida Breve sulco vermelho
na indiferença azul salgada Eis o que resta só
da brancura alada Manuel Madeira, in "No Encalço do Real Inalcançável"
20/05/2005
A arte de plantar a "Flor de Espanto": breve reflexão sobre a poesia de Manuel Madeira
(...)
Ao longo das quatro partes que compõem este livro, o leitor pressente, deslumbrado, que está perante uma obra cuja seriedade é confirmada através da maturidade de um sujeito poético que tem alguma coisa para ensinar aos homens do seu tempo. Estamos perante uma poesia que faz da honestidade uma das suas virtudes principais. Outra das qualidades que encerra é a liberdade sem limites que nela se respira. O sujeito poético de Manuel Madeira é um livre pensador que não hesita em materializar através da palavra ideias e sentimentos que se relacionam directamente com a sua vivência particular. Podemos dizer que na poesia de Manuel Madeira há um excesso de palavras porque há nela também um excesso do real.
Embora a palavra essencial, a palavra definitiva que se radica na ordem final da linguagem poética, nem sempre se coadune com alguns dos poemas aqui publicados, encontramos na sua obra poética o caminho que nos leva à grande poesia do mundo, a fórmula final que conduz ao saber, um saber feito de experiência mas também construído a partir do conhecimento da poesia.
O sujeito poético de Manuel Madeira não descura, como é natural, o testemunho dado por aquilo a que chama as "evidências sensoriais". É assim que intitula a primeira parte da sua obra poética, composta por setenta poemas.
(...) Podemo-nos perguntar o que significa a "evidência" em poesia. Será um conceito retórico, filosófico, ou estritamente sensorial? Corresponderá à evidência platónica a que o sujeito poético se refere num dos poemas da quarta parte deste livro? Ou será tudo isto em simultâneo? Uma leitura atenta desta poesia permite-nos tirar, pelo menos, uma conclusão sobre o conceito de "evidência": trata-se da assunção aglutinadora entre a vida no seu sentido individual e a deslumbrante evidência do mundo tal como ele nos apresenta aos homens de boa vontade. É seguramente a partir desta suposta evidência que a arte poética se torna uma arte, não apenas estritamente metafísica, mas uma arte da metafísica.
(...)Na segunda parte, intitulada "Sombras e baixios", o sujeito poético remete-nos para a problemática das sombras platónicas. Podemos falar de uma temática de sombras partindo da noção de "suspensão espiritual" associada a uma presença invisível.
(...) Na terceira parte, intitulada "Transprências e opacidades", conjunto de setenta e seis poemas, o sujeito poético enuncia ao leitor algumas referências culturais relacionadas com a literatura e com a cultura, procurando vislumbrar aquilo que é perceptível e oculto nessas referências. A vivência do autor está aqui bem expressa num conjunto de poemas que muito se aproximam da pintura, pois falam-nos do lado visível daquio que é possível ver a olho nú. Se esta terceira parte é comparável a uma viagem pela memória, a quarta é comparável a uma viagem pelo tempo, pois intitula-se justamente "Sobre o tampo do tempo". É neste conjunto de oitenta e um poemas que melhor reconhecemos a dimensão sofredora do sujeito poético de Manuel Madeira.
Esta é a parte que consideramos mais comovedora deste primeiro volume da obra poética de Manuel Madeira, comoção que facilmente se reconhece no poema que dedica à memória de Garcia Lorca intitulado "A morte fuzilada" ( p. 366 ), ou naquele que dedica à memória dos mortos de Hiroshima e dedicado ao seu homónimo, o poeta e amigo Henrique Madeira.
Terminamos este percurso pela poesia de Manuel Madeira extraindo da sua leitura a importante imagem do semeador, ou mais propriamente, do plantador. Esta imagem que é também uma poderosa metáfora, surge-nos em vários poemas do livro. Veja-se de que modo o sujeito poético de Manuel Madeira é o semeador, por um lado, da mágoa e da amargura, e por outro, dessa importante "flor de espanto" que é a essência de toda a criação. (...)
O poeta é o plantador da "flor do espanto", pois só ela poderá dar os frutos que a humanidade precisa para que o mundo possa ser, senão um lugar perfeito, pelo menos um lugar melhor. Ficamo-nos com esta simples mensagem de amor, imagem que, por si só, encerra dentro de si a totalidade de uma vida luminosa, consagrada aos caminhos da arte e da beleza...
José Fernando Tavares.
Manuel Rodrigues Madeira
Fotografia 1950
veste um fato novo feito expressamente para esse dia
leva o estandarte guardado há muitos séculos para essa ocasião
e distribui esperanças rubras em flor
a todos os manifestantes. Uns põem-nas na lapela
outros por trás da orelha
alguns guardam-nas no coração. No entanto há muitos homens que comem essas flores
principalmente os que vieram dos bairros mais pobres da cidade
e pouco sabem do valor das vitaminas... Os meninos farrapos
trouxeramos seus arcos ferrugentos
que subitamente ficaram ouro puro
enquanto os papagaios
tão alto
se confundem com os astros
...o sol
sorrindo
vai desfolhando aeroplanos...
Atrás segue a banda dos olhos confiantes
tocando a música das estrelas
que todos sentem. Por último a imensa multidão
que esperou longos anos pelo dia anunciado Vão de mãos dadas
cantando
ostentam inscrições onde se lêem palavras que não estão nos dicionários
agitam ao vento bandeirinhas brancas com letras de fogo
de que só eles sabem o significado... Cada um trouxe para a rua os objectos mais queridos
que exibem ostensivamente:
Flâmulas cor da esperança
a esfera armilar,
pratos que nunca foram utilizados
cadeiras desmanteladas
instrumentos cortantes
etc., etc,... Todas as mães levam ao colo os seus meninos
de cabelos louros que iam ficando negros...
... mas a maior parte
apenas mostra a sua miséria
único móvel que salvaram da tormenta... À passagem do cortejo
abrem-se todas as portas
sai de cada casa uma pomba encarnada
e as árvores do jardim público
curvam-se até ao chão
tirando o chapéu comovidamente! Manuel Madeira
Sobre o Tampo do Tempo
Planície
Escolheste é certo o caminho mais difícil
logo o menos provável de sucesso
Entre dois pontos ignoraste a recta e preferiste
a incessante projecção do aleatório
Gostarias de adoptar a permanente indecisão
a instabilidade instalada na assimetria
o equilíbrio instável da sobrevivência Gravitas em torno de ti próprio mas a órbita é elíptica
e o centro incerto atrai o insecto
como o aspirador engole a partícula Aos poucos vais perdendo a densidade
despindo o acessório limando as arestas arredondando o lastro
até ficares infuso de ti próprio ausente
finalmente plano finalmente pleno
Manuel Madeira, in "No Encalço do Real Inalcançável"
19/05/2005
porque tinjo as cores do arco íris
18/05/2005
teclar
e dele faço um poema )
são o epílogo
de memórias
invioladas
no tempo