31/05/2005


in memoriam Posted by Hello

as noites Posted by Hello

rota de marear Posted by Hello

( 80 anos de poesia ) Posted by Hello

um desafio a quatro mãos

duas, as masculinas, pintam, desenham, (escrevem) e
fotografam.
duas, as femininas, não pintam, não desenham
porém, escrevem.
Augusto Mota, o masculino,
Gabriela Rocha Martins, o feminino,
desafiaram-se a brincar

experimentaram
desgotaram.
apagaram
recriaram.

eis, em sequência, os quatro primeiros fotopoemas.
definitivos?

talvez não.
antes
em contagem decrescente
até
.ao ponto zero.

30/05/2005

De noite, todos os gatos são pardos/Migração Nocturna


De escrita efémera, o texto de hoje, reporta-nos aos pavores nocturnos, próprios de todo o homem/mulher, já na fase adulta.
Mas falar de pavores nocturnos é, de certo modo, reconhecer todos os minutos em que perdemos o fio da realidade e nos achamos enrolados no lençol do medo da lucidez.

De dia, no pino da claridade, enfrentamos o disfarce, sacudimos o cobertor da memória e saímos para o largo do esquecimento.
É de noite, porém, que tudo se transforma ao limite da consciência. Sós, na terrível planície dos olhos abertos contra uma solidão indizível, vemos e sentimos a nossa mesquinha realidade.

E sofremos. Porque nenhuma mentira é permitida.
Um enorme fantasma senta-se na nossa cama - o outro.

O verdadeiro lado que trazemos colado à pele e que só no escuro se revela.
Não é a culpa. É a ausência dela.
É o sentimento de equilíbrio, o cume de todas as experiências gratuitas.

De noite, somos capazes de atingir um certo estado de pureza.
Não há jogos. Não há tréguas. Apenas nudez.

Perdemos origens, destinos, fronteiras.
Somos desertos.

Poder-se-ia chamar memória, ou regresso ao ventre materno, a encruzilhada nocturna.
Mas seria sempre um recuo, uma ponte para a doce inconsciência - a ausência de padrões.

É o ponto zero de um espírito em completo desassossego, perto da lucidez.
Nenhum afecto resiste ao peso de uma insónia.

Só uma espiral lenta e pesada. E aí perdemos a exacta medida do efémero.
É pouco o que nos resta para sonhar.

Inventamos o dia, o emprego, as tarefas do quotidiano, as pequenas trapaças, o último filme, algo que nos dê consistência, significado, tudo o que sirva para apagar a memória de quem somos quando não somos alguém.

De noite, todos os gatos são pardos.
Pardos são os dias quando os deixamos fugir na borda da areia.

Pardos somos nós quando desistimos de procurar o fantasma que herdámos no momento de fugir à claridade.
E, na expectativa dos dias, entragamo-nos ao silêncio da noite....

...emigrantes

................................................
................................................


23h32

Nonsense.

a partir de agora procurem,
também,
o outro lado que trago colado à pele em
http://www.palavrardente.blogspot.com/

rota de marear Posted by Hello

(teclo um corpo/palavra
e escrevo o meu poema)
Posted by Hello

À Vida

Não roubarás minha cor
vermelha, de rio que estua.
Sou recusa: és caçador.
Persegues: eu sou a fuga.
Não dou minha alma cativa!
Colhido em pleno disparo,
curva o pescoço cavalo
árabe
e abre a veia da vida.
Marina Tzvietáieva ( 1892-1941 )

in memoriam Posted by Hello

26/05/2005

...

somos agora descontentes
de haver perdido os afectos
vividos em impunidade
gabriela rocha martins

IV - Afeganistão. Paralelo D

Mulher Afegã Posted by Hello
sem rosto/memória
burka
menina/mulher
o não Ser
o sim Violado
conflito sem fim
Tal
Ali
( o genro de Mohammed )
ban
.dinamite.
gabriela.rocha.martins

Exame

Feiticeiro sem deuses, reconheço
o limite dos meus encantamentos.
Só em raros momentos
de inspiração
eu consigo o milagre de um poema,
teorema
indemonstrável pela multidão.
Mas é desse limite que me ufano:
ser humano
e poeta.
Humildemente,
com toda a paciência da terra,
com toda a impaciência do mar,
aguardo o transe, a hora desmedida;
e é o próprio rosto universal da vida
que se ilumina,
quando o primeiro verso me fulmina.
Miguel Torga

Legenda Íntima 12. Augusto Mota Posted by Hello

Verdadeiro Criador Não Exige Recompensa do Exterior

Por isso, meu caro senhor, apenas me é possível dar-lhe este conselho: mergulhe em si próprio e sonde as profundidades onde a sua vida brota; na sua fonte encontrará a resposta à pergunta "Devo criar?" Aceite essa resposta, tal como lhe é dada, sem tentar interpretá-la. Talvez chegue à conclusão de que a arte o chama. Nesse caso, aceite o seu destino e tome-o, como seu peso e a sua grandeza, sem jamais exigir uma recompensa que possa vir do exterior. Porque o criador deve ser todo um universo para si próprio, tudo encontrar em si próprio e na Natureza à qual toda a sua vida é devotada.
Rainer Maria Rilke, in "Cartas a um Jovem Poeta"

25/05/2005


Legenda Íntima 27. Augusto Mota Posted by Hello

Teoria

Sou o que me rodeia.
As mulheres compreendem isto.
Não se é duquesa
a cem metros de uma carruagem.
Estes, então, são retratos:
uma antecâmara preta;
uma cama alta protegida por cortinas.
Isto são meros exemplos.
Wallace Stevens ( 1879-1955 )
Ficção Suprema

Amor Posted by Hello

24/05/2005

Cantiga de Tereza - 1º Prémio do Concurso Litterarius, 2004


Amor Posted by Hello

Em Riachão - lugar do ermo e do sem fim - o vento tem outros dizeres, cheios de um poemar. E isso que aqui vai, é recontar humilde o dizer de Seu Lourival da Barberaia Nova Aurora: o homem de todas as sabenças. Esse recontar é um nunca-tão-bom-quanto. É do soprar daquele, palavra redita na imensidão da lembrança.
******
Quando a mãe chamou, Tereza já sabia: buscar água na fonte. A imaginação rasteira de moça caminhou ligeira e um fio de sorriso se pronunciou na face afogueirada. É coisa de mocice; da tenrice das primeiras coisas de moça: um não sei quê, que nem mesmo ela sabe porquê. A fonte ficava no descampado, na beira do bosque, ao fundo da ribanceira. Lugar onde moravam a Beleza e a Natrureza: entidades irmãmente eternas, de mãos dadas.
A marca indelével da natureza do imaginário das gentes se faz sentir na tenrice da idade das primeiras mocices. Era lá o palco das brincadeiras da menina-moça, moça-menina. A água pura no fundo do recanto. Foi numa dessas idas a serviço da mãe que Tereza encontrou, em meio à ramagem de verdíssimo teor, um Lírio que verdejava supremo. destacava a beleza inflor da planta inda menina. A menina-moça cuidou zelosa de sua descoberta, pra ver em que cor desabrocharia a planta; que encantos imporia ao seu recanto secreto; que arco-íris romperia em seu céu. Paraíso.
Primavera é um sopro da Natureza que lança luz e perfume n'alma das gentes. E veio. E é em primaveris dias que há rebentação da florada. Vida. O Misterioso sempre se manifesta. E foi numa manhã de entorpecente luminosidade que Tereza encontrou seu Lírio de maravilhas desabrochado em reflexos vermelhosos, do mesmo rubor da fogueira de sua face de moça. Era de vermelho encantamento a flor recém descoberta: em sua forma cônica, explodia em vermelho-sangue junto ao tronco e empalidecia suave até ao vermelho rosáceo da altura, como que abrindo as perspectivas do mundo novo. Uma sensação inédita de sonho e prazer preencheu o coração da menina-moça, diante do se fazer da flor-moça.
Era a flor em beleza o desabrochar da mocidade; era a moça, em beleza, a florada da serra. Brisas eternas sopravam no jardim de uma só flor; acalmavam calores de dias ensolarados. E moça-mocinha está sempre cheia de calor. A água de cristal burilava no chão e molhava os descalços pés brincalhões. Tereza queria mais: os trabalhos árduos de casa eram enfadonhos, modorrentos; desejava o novo, a novidade do mundo; ver o que resplandecia por trás da serra longínqua. Anseios de moça-menina. Enquanto não vinha seu vão-andorinho; preferia preencher seus dias junto de sua flor, cuidosa e brincalhona. A fonte jazia no fundo de seu pedaçosinho de paraíso. A ribanceira era seu caminho de felicidade. Guardiã de sua flor-menina.
Veio uma tarde de Verão e os calores invadiram. Tereza aproveitou o descuido dos olhos vigilantes da mãe ( mãe de moça, porque já foi moça também, conhece os perigos da idade ) e se sumiu pras bandas da ribanceira. Estar perto, junto da flor; junto da fonte. Os pezinhos descalços se jogaram na lâmina de água. O vestido simplório, de gente dada ao trabalho, logo se umedeceu das brincadeiras. Tereza vestida de água, pura. Aquela furtiva brisa veio. Um arrepio tomou conta da Natureza. O Lírio, cada vez mais desabrochado, assumia um rubor intenso. A menina-moça girava enternecida de prazer. É coisa de mocice, girar a esmo.
Mas os cantos desse mundão têm olhos que tudo sente. Depois de tempo de êxtase, girando e brincando na umidade, acariciando a flor, Tereza parou repentina. Pressentiu. O vestido molhado, colado às curvas recém surgidas; montes e vales prontos para serem semeados; os olhos de um negror absurdo se moveram em redor. Já não estava só. A brisa conduz consigo essências feminis, quase imperceptíveis. Atraem. As entidades masculinas reconhecem. Um Lavrador, de fortes feições, observava atento o bailio da moça-menia. Susto. ela pensou em fugir. Não: os pezinhos se descalçando da inocência quietaram a fuga na ramagem rasteira. Olhou por baixo do pretume dos cabelos úmidos jogados sobre o gesto.
O Lavrador parado, olhando incisivo para sua flor. Boas tardes. A voz trovejou no silêncio da ribanceira. Certas vozes, nunca ouvidas, trovejam. No ermo dos seus dias, na distância do seu mundico, Tereza nunca ouvira outro trovejar-homem, que não o da autoridade de seu pai. Não havendo resposta, o desconhecido novamente tentou: não carece vexação, não, Doninha. Pode continuar em vosso rodar, em vosso brincar. Eu, cá por meu lado, continuo com meu roçar.
Tereza permaneceu imóvel; os olhos enfiados nos cabelos; as mãozinhas lépidas segurando o vestido grudado nas curvas. O trovão proferido era marcado e ritmado como uma cantiga nova nunca antes ouvida. O Lavrador recomeçou seu ofício. Foice. Tereza olhou com a sombra do olhar os golpes do instrumento de trabalho do estranho. Golpes rijos e determinados que dizimavam rapidamente as ervas daninhas de derredor. E o roçado se fazia...
A menina-moça temeu pela sua flor de pura beleza, recém-nascida. Aquela foice devastadora poderia dizimar também o encanto singelo e mero daquele Lírio intocado. Num esforço sobre-humano de vencer a timidez, Tereza, num sussurro soprado: o amigo não toque minha flor, não. Ela é novinha, novinha; recém floriu da primeira rubra floração. Cuido dela desde que era matinho inflor e nem cor tinha. Todos dias zelo pela viçosidade dessa belezura. Não quebre, não. Eu lhe peço, de favor, é proteção.
Redizente, o trovão trovejou novamente respondendo ao refrão da voz-menina: Doninha, não carece de ter medo; minha foice é de quebrar ervas mateiras e derrubar fronde inteiras; mas, flor de encanto e fermosura, que nasce do fundo de fontes, em clausura, no ermo de ribanceira, não quebro, não: respeito; protejo. Tais dizeres acalmaram Tereza como melodia cândida, mas uma força estranha e nova fez pressão no interior de seu peito-menina, e a menina-moça disparou fugidia pra segurança de casa. Era essa uma brincadeira nova, cheia de mistérios e anseios.
Não falou pra mãe do encontro na fonte. O coração palpitava, sufocante; uma quentura estrangulava a sua respiração cada vez que se alembrava daquele trovejar, daquela foice destruindo ervas altivas ou rasteiras. Poder e força máscula. Lembrou e relembrou cada palavra trovejada e cada sonoridade poemada. A proteção prometida... Sentiu um conforto; seus olhos se encheram de uma poesia que somente olho de menina resplandece; e os lábios sorriam um fio de sorriso ditoso que somente em boca de moça se reconhece.
Foi um dia.
Não via a hora de ouvir o chamado da mãe. Preocupação com a flor(?). Queria tocar seu Lírio, sentir seu perfume. Acariciá-lo. Confiara na força das palavras do desconhecido Lavrador. Proteção. Respeitaria. A manhã despertada brotara e Tereza não se conteve: vou eu, Madre, lavar meus cabelos na fonte. Felicidade. Olhou em torno e nada viu além das ervas do ex-verdíssimo teor, derrubadas pelo jugo da foice. Não o via. Teria partido pra sempre? Seu Lírio continuava límpido e luzidio em meio à romagem destruída; intacto, cheio de essências. Conforto. Um Lavrador quebra ervas daninhas, mas protege as flores primaveris.
Mas, nos olhos de Tereza, uma sombra de tristeza se fez surgir: queria agradecer ao homem pelo zelo com a beleza e pureza de sua flor-menina. Onde andaria ele agora? Que outras flores protegeria? Que descampados de meu Deus roçaria? Naquele dia, outras foram as descidas ao fundo da ribanceira, na labuta de buscar água, mas nada do estranho aparecer.
Naquela noite, Tereza dormiu uma noite sem estrelas, em que a lua era de um brilho maciço e cinza.
São coisas de moça-menina essas de noites sem estrelas e de luas cinzentas.
Ao nascer de outro dia, sem mando, sem nada, Tereza se sumiu pros cantos de seu paraisozinho. A esperança de rever e apenas agradecer ( em que queria acreditar ) o cuidado dispensado. Com a respiração ofegante e o coração em galope, chegou ao seu jardinzinho. Viu o já bem vindo amigo em seu trabalho de roçado. Parou assustada com sua própria precipitação e audácia e olhou longamente pro Lavrador que trabalhava incansável. Detalhou-o. A força e determinação dos golpes; o tronco altaneiro; as mãos enormes; o ombro vasto; os braços de mil abraços; as pernas maciças de tantas andanças; os cabelos da cor do céu que prenuncia chuva; no rosto moreno de sol, um risco de suor cortando; um fino cheiro-homem revoando naquela eterna brisa da fonte.
Tereza pensou que desfaleceria; não esperava ( ou esperava demais ) aquela atitude. Seus pés descalços procuravam um chão que havia fugido. E ouviu aturdida a força daquela voz: não tenha medo, bela, por vossa flor; nem por vosso secreto recanto; quero, sim, ser vosso amigo e guardador. Ao que Tereza redisse: vosso gesto terá de mim eterna dedicação, repleta de respeito e devoção. Então o moço, sentindo-se aconchegado, trocou passos decididos. Tereza se fez parada inda mais diante da aproximação. O Lavrador, conhecedor das artimanhas do cuidar de jardim de moças, lançou, com a possível suavidade esperada das mãos rudes de seu ofício, seu gesto em direcção à rubra flor.
Sentiu o coração se agigantar no peito-menina. Mocice. O Lavrador, já de em antes apercebido da chegada da moça, disfarçoso, interrompeu seu ritmo e olhou decisivo em sua direcção. E trovejou: a Doninha veja que nada houve com vossa flor; que, de flor donzela, sou zeloso cuidador. Era preciso dizer algo, pensou ela, mas era preciso usar toda a força pra vencer a barreira da vergonhice. Mas, audácia é propriedade de coração de menina-moça, e disse: bem vejo vossa atitude e muito feliz me faço eu nela; se ser amigo é seu querer, bem zele seu bem nela. O moço se alegrou dos dizeres da moça-menina; viu sua chance. Aproximou-se.
A moça-menina estremeceu e suspirou de temores pela segurança de seu Lírio recém florido. Foi com ternura e maciez que as mãos chegaram à cônica planta e dela retiraram o perfume inebriante que somente as flores-meninas exalam. Paradeza do tempo. Tereza em tremidão, imaginativa e sonhante. Nunca, ninguém vira sua flor; jamais alguém a tocara além dela mesma em brincadeiras e, agora, sentia-se embebida de uma estranha satisfação naquele carinho novo e floral. Olhou, ele, decidido nos olhos de Tereza, olhos que se fecharam imediatamente, fugindo. Respirava, ela, aquele cheiro desconhecido, mas prazeroso, de ervas verdíssimas derrubadas, que vinha com a brisa eterna.
( Nessas horas os homens têm essência de florestas derrubadas ). Não pôde determinar a direcção, mas percebeu que do Amigo recendia. O Lavrador alcançou com mão sorrateira sua afiada foice e com um cuidado infinito tocou o fio na flor que cedeu em sua tênue resistência. A moça pensou que morreria nas brumas daquilo que misturava sonho e realidade. A sua tão cuidada flor, colhida, carinhosamente colhida. Mas o fero e delicado toque do instrumento de lavra, ao contrário de desesperá-la, acalmou-a de seus inúteis temores. O rubor ingênuo do Lírio se ruborizou inda mais ( um vermelho de colheita ) e exalou sua essência nova.
(Nessas horas, surgem essências de semente ). Tereza acordou das brumas de sonho, da vertigem e do vagar dos campos floridos, e correu.
O coração foi a galopes, fugindo para se esconder junto da mãe, de onde demoraria um tanto mais por sair. E, no sorriso assustado e agora sabedor, surgiu um diferente tom. Sabia que o lírio colhido em fonte úmida preparava semente. E seu olhar brilhava de uma cor desinocente; uma cor nova; uma cor de flor-mulher.
Valdir Moreira Lobo,
Rio de Janeiro.

21/05/2005


Mário Máximo Posted by Hello
"tenho saudades das nossas conversas acerca do universo, acerca da vida e da utopia.
Espero que permitas que as reedite muito em breve.
Um beijo muito amigo"

Pouco a Dizer (II)

Pouco a dizer.
Estou a ser assassinado de encontro às musas.
Não contentes, querem ainda secar
a minha fonte de inspiração.
Só que essa eles não sabem onde fica.
Onde corre o inextinguível fio, em que vaso
se lança, o som harmonioso que faz,
tudo isso ignoram.

Sabem que existe, que corre, essa água sublime.
mas não sabem mais nada.
E é essa ignorância o que os humilha infinitamente...
Mário Máximo, in Prima Materia

Pouco a Dizer (I)

Pouco a dizer.
Estou a ser assassinado de encontro às musas.
levantaram muros
para impedir todas as viagens aladas
que há dentro das minhas paisagens interiores.
Sei agora que continuarão a fazê-lo até ao fim
do meu mundo secreto.
Mário Máximo, in Prima Materia

Além Posted by Hello

"Cântico"/( Homenagem a José Régio )

Nasci
quando o fruto se abriu em semente
quando a noite rasgou o ventre de minha mãe

trazia
o vagido fechado das primeiras pancadas
os pés abertos no cordão que me cortaram

contei
cada segundo que passava do acto em que nasci


( como se adivinhasse que
correriam sobre os meus olhos
pisariam os meus ossos ou
cuspiriam a minha carne crua )


corri
pendurada nas hastes do tempo
pelos lagos da minha infância


suguei
o tutano viscoso das palavras
o sentido da REVOLTA e
guardei
as minhas ambições nas prateleiras
duma biblioteca quadrada


assisti
à dança macabra das freiras
enfeitadas com colares de espanto


saí
de mim
dos compêndios riscados com borronas
das sebentas bentas pelos lentes e
vomitei de nojo

corri
as ruas duma cidade infecta

desfraldei
bandeiras rubras de sangue

soltei
temporais de vento norte

descobri
o amor mecânico das prostitutas

abri
os olhos no sono dos homossexuais

pisei
as mãos dos mortos

amei
com dedos carregados de ternura

precisei
um mundo de beleza e
senti
no corpo
o gosto acre da derrota

descansei
meus olhos sem lágrimas

devorei
livros, teorias, ensaios, filmes

vivi
as guerras, as bombas de napalm

percorri
caminhos de Mao a Ho-Chi-Min

embosquei
a raiva na morte de Che Guevara

alvorocei
cidades condenadas

ensinei
crianças famintas de cultura e fome

vi
meu corpo caminhar sem medo
minha boca falar por si
minha razão tomar razão
meus pés andarem sem bengalas e
meus braços sem muletas

despi-me
rindo com todos os dentes
no pudor dos precocemente enterrados e
FIZ-ME.

gabriela rocha martins

Posted by Hello

Cântico Negro

"Vem por aqui!"- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem:"vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
( Há, nos meus olhos, ironias e cansaços )
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe.
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis:"Vem por aqui?"
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- sei que não vou por aí!
José Régio.

Legenda Íntima 23. Augusto Mota Posted by Hello

O rosto dos gestos

Secreta é a voz que nos fala distante, perdida nas ruas de si própria. Secreto é o olhar que guia os nossos passos pelos atalhos da tarde. Secreto é o perfume que anima o rosto dos gestos, agora, também eles, perdidos nas ruas de si próprios.
Divagando pelas ruas, arrastamos as palavras de encontro aos muros brancos da cidade antiga e neles registamos os sentidos particulares que se escondem por detrás de cada letra de cada palavra. Assim expostos, alguém há-de ajudá-los a encontrar o caminho certo de volta às palavras onde sempre habitaram, antes de a aventura dos dias lhes ter destinado outras paragens.
Em cada gesto mora uma palavra. Em cada palavra mora um gesto. Tudo começa e acaba no gesto do olhar, no rosto dos gestos.
Secreta é a esperança que, como um rio, reflecte o corpo e o rosto. Só as mãos ficam de fora para, do cimo do monte, acenar um adeus ao sol poente que se esconde, ao longe, apressadamente, entre os pinhais da beira-mar, levando consigo, para o outro lado do mundo, um novo sentido para a palavra saudade.
Augusto Mota, in "Geografia do Prazer", 2000 ( inédito )

Legenda Íntima 4. Augusto Mota Posted by Hello

A Morte da Gaivota


Figura alada Posted by Hello
Súbito o estampido
e da nuvem álacre
uma ave espavorida se desprende
balouça
oscila
nas transparentes mãos do vento
branca pluma de argila
Um grito atónito acompanha
sua lenta descida
E sobre as águas cai
frágil recordação do frémito das asas
a gaivota ferida
Breve sulco vermelho
na indiferença azul salgada
Eis o que resta só
da brancura alada
Manuel Madeira, in "No Encalço do Real Inalcançável"

20/05/2005

A arte de plantar a "Flor de Espanto": breve reflexão sobre a poesia de Manuel Madeira

"É preciso vislumbrar o impreciso
escondido por trás das evidências
quando a luz se perde no labirinto das trevas.
Aí se revelam as pulsões mais íntimas
em si mesmas naufragadas"

(...)

Ao longo das quatro partes que compõem este livro, o leitor pressente, deslumbrado, que está perante uma obra cuja seriedade é confirmada através da maturidade de um sujeito poético que tem alguma coisa para ensinar aos homens do seu tempo. Estamos perante uma poesia que faz da honestidade uma das suas virtudes principais. Outra das qualidades que encerra é a liberdade sem limites que nela se respira. O sujeito poético de Manuel Madeira é um livre pensador que não hesita em materializar através da palavra ideias e sentimentos que se relacionam directamente com a sua vivência particular. Podemos dizer que na poesia de Manuel Madeira há um excesso de palavras porque há nela também um excesso do real.

Embora a palavra essencial, a palavra definitiva que se radica na ordem final da linguagem poética, nem sempre se coadune com alguns dos poemas aqui publicados, encontramos na sua obra poética o caminho que nos leva à grande poesia do mundo, a fórmula final que conduz ao saber, um saber feito de experiência mas também construído a partir do conhecimento da poesia.

O sujeito poético de Manuel Madeira não descura, como é natural, o testemunho dado por aquilo a que chama as "evidências sensoriais". É assim que intitula a primeira parte da sua obra poética, composta por setenta poemas.

(...) Podemo-nos perguntar o que significa a "evidência" em poesia. Será um conceito retórico, filosófico, ou estritamente sensorial? Corresponderá à evidência platónica a que o sujeito poético se refere num dos poemas da quarta parte deste livro? Ou será tudo isto em simultâneo? Uma leitura atenta desta poesia permite-nos tirar, pelo menos, uma conclusão sobre o conceito de "evidência": trata-se da assunção aglutinadora entre a vida no seu sentido individual e a deslumbrante evidência do mundo tal como ele nos apresenta aos homens de boa vontade. É seguramente a partir desta suposta evidência que a arte poética se torna uma arte, não apenas estritamente metafísica, mas uma arte da metafísica.

(...)Na segunda parte, intitulada "Sombras e baixios", o sujeito poético remete-nos para a problemática das sombras platónicas. Podemos falar de uma temática de sombras partindo da noção de "suspensão espiritual" associada a uma presença invisível.

(...) Na terceira parte, intitulada "Transprências e opacidades", conjunto de setenta e seis poemas, o sujeito poético enuncia ao leitor algumas referências culturais relacionadas com a literatura e com a cultura, procurando vislumbrar aquilo que é perceptível e oculto nessas referências. A vivência do autor está aqui bem expressa num conjunto de poemas que muito se aproximam da pintura, pois falam-nos do lado visível daquio que é possível ver a olho nú. Se esta terceira parte é comparável a uma viagem pela memória, a quarta é comparável a uma viagem pelo tempo, pois intitula-se justamente "Sobre o tampo do tempo". É neste conjunto de oitenta e um poemas que melhor reconhecemos a dimensão sofredora do sujeito poético de Manuel Madeira.

Esta é a parte que consideramos mais comovedora deste primeiro volume da obra poética de Manuel Madeira, comoção que facilmente se reconhece no poema que dedica à memória de Garcia Lorca intitulado "A morte fuzilada" ( p. 366 ), ou naquele que dedica à memória dos mortos de Hiroshima e dedicado ao seu homónimo, o poeta e amigo Henrique Madeira.

Terminamos este percurso pela poesia de Manuel Madeira extraindo da sua leitura a importante imagem do semeador, ou mais propriamente, do plantador. Esta imagem que é também uma poderosa metáfora, surge-nos em vários poemas do livro. Veja-se de que modo o sujeito poético de Manuel Madeira é o semeador, por um lado, da mágoa e da amargura, e por outro, dessa importante "flor de espanto" que é a essência de toda a criação. (...)

O poeta é o plantador da "flor do espanto", pois só ela poderá dar os frutos que a humanidade precisa para que o mundo possa ser, senão um lugar perfeito, pelo menos um lugar melhor. Ficamo-nos com esta simples mensagem de amor, imagem que, por si só, encerra dentro de si a totalidade de uma vida luminosa, consagrada aos caminhos da arte e da beleza...

José Fernando Tavares.


No Encalço do Real Inalcançável Posted by Hello

Manuel Rodrigues Madeira

Nasceu em S. Bartolomeu de Messines, a 21 de Agosto de 1924, mas cedo foi levado para Faro, e, mais, tarde para Olhão, onde hoje reside.
Interrompeu os estudos secundários por motivos económicos, e só na terceira idade frequentou a Universidade.
Foi preso e torturado pela PIDE.
Colaborou, como poeta e ensaísta, em publicações clandestinas de divulgação cultural no Algarve, nos anos 40, e em jornais e revistas literárias, mormente, "Cadernos do Meio Dia", de Faro, "Vértice", de Coimbra e "Seara Nova", de Lisboa.
Figura na "Antologia Portuguesa do Pós-Guerra", 1945-1965.
É co-fundador da revista literária "Sol XXI", de Carcavelos, com a qual colabora.
Está representado na Antologia "100 Anos Federico Garcia Lorca Homenagem dos Poetas Portugueses", Universitária Editora Lisboa, 1998.
Participou nos cadernos de poesia "Viola Delta" XXIX e "Viola Delta" XXX, edições Mic, saídos respectivamente em Junho de 2000 e Janeiro de 2001.
É autor do livro de poemas "No Encalço do Real Inalcançável", editorial Minerva, com prefácio epistolar de António Ramos Rosa...

Manuel Rodrigues Madeira Posted by Hello

Fotografia 1950

O Poeta vai à frente
veste um fato novo feito expressamente para esse dia
leva o estandarte guardado há muitos séculos para essa ocasião
e distribui esperanças rubras em flor
a todos os manifestantes.
Uns põem-nas na lapela
outros por trás da orelha
alguns guardam-nas no coração.
No entanto há muitos homens que comem essas flores
principalmente os que vieram dos bairros mais pobres da cidade
e pouco sabem do valor das vitaminas...
Os meninos farrapos
trouxeramos seus arcos ferrugentos
que subitamente ficaram ouro puro
enquanto os papagaios
tão alto
se confundem com os astros
...o sol
sorrindo
vai desfolhando aeroplanos...
Atrás segue a banda dos olhos confiantes
tocando a música das estrelas
que todos sentem.
Por último a imensa multidão
que esperou longos anos pelo dia anunciado
Vão de mãos dadas
cantando
ostentam inscrições onde se lêem palavras que não estão nos dicionários
agitam ao vento bandeirinhas brancas com letras de fogo
de que só eles sabem o significado...
Cada um trouxe para a rua os objectos mais queridos
que exibem ostensivamente:
Flâmulas cor da esperança
a esfera armilar,
pratos que nunca foram utilizados
cadeiras desmanteladas
instrumentos cortantes
etc., etc,...
Todas as mães levam ao colo os seus meninos
de cabelos louros que iam ficando negros...
... mas a maior parte
apenas mostra a sua miséria
único móvel que salvaram da tormenta...
À passagem do cortejo
abrem-se todas as portas
sai de cada casa uma pomba encarnada
e as árvores do jardim público
curvam-se até ao chão
tirando o chapéu comovidamente!
Manuel Madeira

Poema Censurado Posted by Hello

Sobre o Tampo do Tempo


Planície Posted by Hello

Escolheste é certo o caminho mais difícil
logo o menos provável de sucesso
Entre dois pontos ignoraste a recta e preferiste
a incessante projecção do aleatório
Gostarias de adoptar a permanente indecisão
a instabilidade instalada na assimetria
o equilíbrio instável da sobrevivência
Gravitas em torno de ti próprio mas a órbita é elíptica
e o centro incerto atrai o insecto
como o aspirador engole a partícula
Aos poucos vais perdendo a densidade
despindo o acessório limando as arestas arredondando o lastro
até ficares infuso de ti próprio ausente
finalmente plano finalmente pleno

Manuel Madeira, in "No Encalço do Real Inalcançável"

arco íris Posted by Hello

19/05/2005

porque tinjo as cores do arco íris

Pensei, porque o nome o justifica, indiciar neste meu blogue - Palácio das Varandas / Al-Xaradjibe - os poetas arábico/trovadorescos.
Cedo desisti da ideia.
Primeiro,
por admiração ao meu amigo António Baeta Oliveira, autor do blogal & logal. Ele, sim, verdadeiro amante da nossa poesia luso(?)- árabe.
Segundo,
por esgotamento, não por enjeite. Tal persistente fixação obrigar-me-ia a recolher ao passado, híbrido, fantasiado na sombra de um secular destino de representações que, por simbólico, dificultar-me-ia uma intervenção coerente.
Equívoco de uma perene e muralhada fruição simbólica.
Destarte, eis-me sem "...idade".
Porquê? Porque opto pelo ser/devir. Porque, como cada um, tenho o instinto inacto da independência, e, o meu "caminho" será o de dizer o indizível na incitação do poeta.
(António, meu Amigo, para ti os Árabes.
Para mim, os Luso )
Com eles forjarei ( para eles e sobre eles ) teias de cumplicidade.
Pincelarei, como a Estela Guedes porfiou, o verde de António Ramos Rosa.
Oporei, como Ramos Rosa epistolou, o vermelho ao Manuel Madeira.
Brincarei com o dourado do Sandro William Junqueira.
Apagarei o cinzento da Glória Maria Marreiros.
Cantarei o negro de José Régio.
Revisitarei Legendas Íntimas,
incitando, à dúplice arte, Augusto Mota,
e,
com os demais tingirei o arco-íris.
gabriela rocha martins

18/05/2005


Legenda Íntima 3. Augusto Mota Posted by Hello

teclar

( teclo um corpo/palavra
e dele faço um poema )

as noites
são o epílogo
de memórias
invioladas
no tempo

em que nos sabemos

gabriela rocha martins

Trilogia de Guerra Posted by Hello