14/05/2005

´"Só de Amor", de Olga Gonçalves

( escrevi este artigo, publicado no jornal "Letras e Letras", em 1993. Trago-o à memória porque não era mais do que um desejo, profundo, da Olga )

Porquê silenciado?
Porquê um livro de sonetos?
Porque não se conhece Olga Gonçalves como poeta?
Não será ela a principal responsável pelo esquecimento dos seus poemas?


Sei que quando convidada para falar sobre a sua obra, em Portugal e/ou no estrangeiro, nunca refere a sua obra poética.
"Porque não constam dos programas escolares - responde-me - ao contrário dos meus romances".
E, em jeito de conversa retrospectiva, a Olga conta-me o modo como, nela, a poeta deu lugar à romancista.
No dia 25 de Abril de 1974, o escritor Manuel Ferreira, então director do Departamento Cultural da Sassetti, esperava-a, pelas 15 horas, para levar a cabo o projecto de gravação, em "long-play", de uma versão moderna de "Menina e Moça" de Bernardim Ribeiro.
"Mas a revolução - acrescenta, com aquele entusiasmo que lhe é peculiar - mandou-me para a rua! Era mais importante festejar os cravos e ouvir as vozes que me chegavam da multidão".
O decurso inevitável da História e o pós 25 de Abril, levá-la-iam a debruçar-se sobre o tema dos emigrantes e o seu retorno a Portugal.

Escreveu "A Floresta de Bremerhaven" ( Prémio Ricardo Malheiro ), começando, destarte, a traçar o seu perfil de romancista.
Todavia, romancista do histórico e do sociólógico.
Escreveu sete romances.
Nela, porém, a poesia sempre esteve subjacente, e, em Outubro de 1975, a Colecção "Poesia", da Editora Ática, deu à estampa o subtil livro de sonetos "Só de Amor".
Mas, o clientelismo do mercado livreiro que então proliferava, preferiu relevar a política e a pornografia, deixando "Só de Amor", apesar de toda a sua beleza e profundidade, ignorado e entregue àquele abandono que os clássicos não merecem.
Somente Jacinto do Prado Coelho e David Mourão-Ferreira, consultados pela Ática, foram unânimes em considerar o mérito de tais sonetos, e em recomendá-los, vivamente, para a Colecção que já publicara Sebastião da Gama, Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Sophia de Mello-Breynner, entre outros.O soneto, como forma, impõe-se-lhe.
Assim, em 1980, a Colecção "O Oiro do Dia", da Editorial Inova ( Porto ), surge com uma plaqueta de Olga Gonçalves: "Três Poetas".
De igual modo, dois sonetos - analogias aos Descobrimentos Portugueses - são a sua contribuição para a Antologia "Onde O Mar Acaba" que a Editorial D. Quixote publica.
"Só de Amor", porém, e, apesar de desconhecido entre nós, atravessa fronteiras e, em Espanha, a Autora recebe o merecido estímulo por parte dos Professores da Faculdade de Filologias Galega e Portuguesa, de Barcelona, Basilio Losada e Helena Losada.

O poeta Angel Crespo, por seu lado, não deixa de comentar os seus sonetos, dizendo "son un milagro"........."
Só de Amor" trata-se, tão só, de um romance escrito em forma de sonetos, onde EROS se confunde, nos cheiros e nos corpos que se tocam e se fundem, constituindo o princípio da Paixão e do Sexo, e, a plenitude do Amor.
É o encontro e, como tal, no feminino, a certeza da continuidade, da entega e do eterno, num jogo de sedução a dois.
Mas é, igualmente, a festa.
A festa da vida, dual e colectiva, na celebração de Abril de 1974, referenciada no seguinte soneto:

festejar no teu corpo a liberdade
que a dobra desta noite pronuncia
sobre o nervo da voz força de alarme
garganta milimétrica de abril

um cravo da coronha de um soldado
no carmo há meia hora ainda em sentido
para o gesto tão fundo tão volável
infância já da luz dentro do sismo

jornais não censurados no tapete
uma fábula fértil de fogueiras
crepitando onde rola o som da estampa

interior ao rumo a labareda
o desenho final do nosso beijo
na premissa mais livre do meu sangue

THANATOS, todavia, emerge consequente, no centro do erotismo, e, na descontinuidade do prazer masculino, origina a gradual degradação desse amor, provocando o seu fim.

qual de nós dois se esquece qual isola
os arquivos do sonho contra a dor
qual se descobre e encobre noutro tempo
já sono e morte já despojamento

qual sente mais o frio qual de nós
resgata o vento com força maior
qual se reparte e parte na corrente
já combinado ao sangue do silêncio

qual sente o rosto intenso do desgosto
de nada e de ninguém vestindo as coisas
pulso nocturno a projectar o gesto

qual redesenha o fim qual de nós dois
prende o amor nos fachos da memória
qual de nós dois se esquece e se enternece

No imaginário feminino e como dissolução do UNO, o estado de enamoramento, dolorosamente, sublimado em MEMÓRIA.
De salientar a maneira hábil como Olga Gonçalves articula a história de amor e termina o romance.
O último soneto encontra-se separado dos demais por uma folha, onde, no branco, se destaca a palavra Pirogravura ( gravado a fogo ).
Na pág. 47, o 35º soneto ressurge, isolado, como catarse de uma paixão que foi intensa.

e quando os passos abafam jade
se quando era um colar a tua sede
e quando as danças livres aromáticas
gestos do nardo repetiam ecos

e quando a altura inerte respira
idade outras imagens a dormir nas redes
se dirigia lenta para a tarde
onde a rampa do mar domina as velas

e quando a flor se recolheu a sombra
e quando a sombra deslizou no solo
e se evadiu nos íntimos crepúsculos

e quando houve uma forma só de lábios
erosiva argilosa vigilante
a prolongar o litoral nocturno

Torna-se urgente chamar a atenção para os livros, como "Só de Amor" que, pelo seu valor intrínseco, carecem de reedição imediata.
Questiono-a sobre o que escreve, no domínio da Poesia.
Confessa-me que "jamais deixo ( e eu fui testemunha disso ) de fazer poesia. Neste momento, tenho um livro começado cujo título será "Dois Minutos de Ocaso"
...Urge, porém, dar voz a "Só de Amor".
A sua reedição impõe-se um ano após a morte de Olga Gonçalves.

gabriela rocha martins

2 comentários:

Anónimo disse...

excelente texto e a musica e espectacular

UmaMaria disse...

Fui encontrar na minha estante alguns romances de Olga Gonçalves. Há muito que a não lia...e nem sequer sabia que já tinha falecido. Foi um choque porque a julgava ainda viva...