20/05/2005

A arte de plantar a "Flor de Espanto": breve reflexão sobre a poesia de Manuel Madeira

"É preciso vislumbrar o impreciso
escondido por trás das evidências
quando a luz se perde no labirinto das trevas.
Aí se revelam as pulsões mais íntimas
em si mesmas naufragadas"

(...)

Ao longo das quatro partes que compõem este livro, o leitor pressente, deslumbrado, que está perante uma obra cuja seriedade é confirmada através da maturidade de um sujeito poético que tem alguma coisa para ensinar aos homens do seu tempo. Estamos perante uma poesia que faz da honestidade uma das suas virtudes principais. Outra das qualidades que encerra é a liberdade sem limites que nela se respira. O sujeito poético de Manuel Madeira é um livre pensador que não hesita em materializar através da palavra ideias e sentimentos que se relacionam directamente com a sua vivência particular. Podemos dizer que na poesia de Manuel Madeira há um excesso de palavras porque há nela também um excesso do real.

Embora a palavra essencial, a palavra definitiva que se radica na ordem final da linguagem poética, nem sempre se coadune com alguns dos poemas aqui publicados, encontramos na sua obra poética o caminho que nos leva à grande poesia do mundo, a fórmula final que conduz ao saber, um saber feito de experiência mas também construído a partir do conhecimento da poesia.

O sujeito poético de Manuel Madeira não descura, como é natural, o testemunho dado por aquilo a que chama as "evidências sensoriais". É assim que intitula a primeira parte da sua obra poética, composta por setenta poemas.

(...) Podemo-nos perguntar o que significa a "evidência" em poesia. Será um conceito retórico, filosófico, ou estritamente sensorial? Corresponderá à evidência platónica a que o sujeito poético se refere num dos poemas da quarta parte deste livro? Ou será tudo isto em simultâneo? Uma leitura atenta desta poesia permite-nos tirar, pelo menos, uma conclusão sobre o conceito de "evidência": trata-se da assunção aglutinadora entre a vida no seu sentido individual e a deslumbrante evidência do mundo tal como ele nos apresenta aos homens de boa vontade. É seguramente a partir desta suposta evidência que a arte poética se torna uma arte, não apenas estritamente metafísica, mas uma arte da metafísica.

(...)Na segunda parte, intitulada "Sombras e baixios", o sujeito poético remete-nos para a problemática das sombras platónicas. Podemos falar de uma temática de sombras partindo da noção de "suspensão espiritual" associada a uma presença invisível.

(...) Na terceira parte, intitulada "Transprências e opacidades", conjunto de setenta e seis poemas, o sujeito poético enuncia ao leitor algumas referências culturais relacionadas com a literatura e com a cultura, procurando vislumbrar aquilo que é perceptível e oculto nessas referências. A vivência do autor está aqui bem expressa num conjunto de poemas que muito se aproximam da pintura, pois falam-nos do lado visível daquio que é possível ver a olho nú. Se esta terceira parte é comparável a uma viagem pela memória, a quarta é comparável a uma viagem pelo tempo, pois intitula-se justamente "Sobre o tampo do tempo". É neste conjunto de oitenta e um poemas que melhor reconhecemos a dimensão sofredora do sujeito poético de Manuel Madeira.

Esta é a parte que consideramos mais comovedora deste primeiro volume da obra poética de Manuel Madeira, comoção que facilmente se reconhece no poema que dedica à memória de Garcia Lorca intitulado "A morte fuzilada" ( p. 366 ), ou naquele que dedica à memória dos mortos de Hiroshima e dedicado ao seu homónimo, o poeta e amigo Henrique Madeira.

Terminamos este percurso pela poesia de Manuel Madeira extraindo da sua leitura a importante imagem do semeador, ou mais propriamente, do plantador. Esta imagem que é também uma poderosa metáfora, surge-nos em vários poemas do livro. Veja-se de que modo o sujeito poético de Manuel Madeira é o semeador, por um lado, da mágoa e da amargura, e por outro, dessa importante "flor de espanto" que é a essência de toda a criação. (...)

O poeta é o plantador da "flor do espanto", pois só ela poderá dar os frutos que a humanidade precisa para que o mundo possa ser, senão um lugar perfeito, pelo menos um lugar melhor. Ficamo-nos com esta simples mensagem de amor, imagem que, por si só, encerra dentro de si a totalidade de uma vida luminosa, consagrada aos caminhos da arte e da beleza...

José Fernando Tavares.

2 comentários:

Anónimo disse...

assim é que é falar!
mutio bem...

Anónimo disse...

o texto é longo mas vale a pena lê-lo, para perceber a poesia de um Manuel Madeira que eu não conhecia.
Gostei do texto e dos poemas