Amor
Em Riachão - lugar do ermo e do sem fim - o vento tem outros dizeres, cheios de um poemar. E isso que aqui vai, é recontar humilde o dizer de Seu Lourival da Barberaia Nova Aurora: o homem de todas as sabenças. Esse recontar é um nunca-tão-bom-quanto. É do soprar daquele, palavra redita na imensidão da lembrança.
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Quando a mãe chamou, Tereza já sabia: buscar água na fonte. A imaginação rasteira de moça caminhou ligeira e um fio de sorriso se pronunciou na face afogueirada. É coisa de mocice; da tenrice das primeiras coisas de moça: um não sei quê, que nem mesmo ela sabe porquê. A fonte ficava no descampado, na beira do bosque, ao fundo da ribanceira. Lugar onde moravam a Beleza e a Natrureza: entidades irmãmente eternas, de mãos dadas.
A marca indelével da natureza do imaginário das gentes se faz sentir na tenrice da idade das primeiras mocices. Era lá o palco das brincadeiras da menina-moça, moça-menina. A água pura no fundo do recanto. Foi numa dessas idas a serviço da mãe que Tereza encontrou, em meio à ramagem de verdíssimo teor, um Lírio que verdejava supremo. destacava a beleza inflor da planta inda menina. A menina-moça cuidou zelosa de sua descoberta, pra ver em que cor desabrocharia a planta; que encantos imporia ao seu recanto secreto; que arco-íris romperia em seu céu. Paraíso.
Primavera é um sopro da Natureza que lança luz e perfume n'alma das gentes. E veio. E é em primaveris dias que há rebentação da florada. Vida. O Misterioso sempre se manifesta. E foi numa manhã de entorpecente luminosidade que Tereza encontrou seu Lírio de maravilhas desabrochado em reflexos vermelhosos, do mesmo rubor da fogueira de sua face de moça. Era de vermelho encantamento a flor recém descoberta: em sua forma cônica, explodia em vermelho-sangue junto ao tronco e empalidecia suave até ao vermelho rosáceo da altura, como que abrindo as perspectivas do mundo novo. Uma sensação inédita de sonho e prazer preencheu o coração da menina-moça, diante do se fazer da flor-moça.
Era a flor em beleza o desabrochar da mocidade; era a moça, em beleza, a florada da serra. Brisas eternas sopravam no jardim de uma só flor; acalmavam calores de dias ensolarados. E moça-mocinha está sempre cheia de calor. A água de cristal burilava no chão e molhava os descalços pés brincalhões. Tereza queria mais: os trabalhos árduos de casa eram enfadonhos, modorrentos; desejava o novo, a novidade do mundo; ver o que resplandecia por trás da serra longínqua. Anseios de moça-menina. Enquanto não vinha seu vão-andorinho; preferia preencher seus dias junto de sua flor, cuidosa e brincalhona. A fonte jazia no fundo de seu pedaçosinho de paraíso. A ribanceira era seu caminho de felicidade. Guardiã de sua flor-menina.
Veio uma tarde de Verão e os calores invadiram. Tereza aproveitou o descuido dos olhos vigilantes da mãe ( mãe de moça, porque já foi moça também, conhece os perigos da idade ) e se sumiu pras bandas da ribanceira. Estar perto, junto da flor; junto da fonte. Os pezinhos descalços se jogaram na lâmina de água. O vestido simplório, de gente dada ao trabalho, logo se umedeceu das brincadeiras. Tereza vestida de água, pura. Aquela furtiva brisa veio. Um arrepio tomou conta da Natureza. O Lírio, cada vez mais desabrochado, assumia um rubor intenso. A menina-moça girava enternecida de prazer. É coisa de mocice, girar a esmo.
Mas os cantos desse mundão têm olhos que tudo sente. Depois de tempo de êxtase, girando e brincando na umidade, acariciando a flor, Tereza parou repentina. Pressentiu. O vestido molhado, colado às curvas recém surgidas; montes e vales prontos para serem semeados; os olhos de um negror absurdo se moveram em redor. Já não estava só. A brisa conduz consigo essências feminis, quase imperceptíveis. Atraem. As entidades masculinas reconhecem. Um Lavrador, de fortes feições, observava atento o bailio da moça-menia. Susto. ela pensou em fugir. Não: os pezinhos se descalçando da inocência quietaram a fuga na ramagem rasteira. Olhou por baixo do pretume dos cabelos úmidos jogados sobre o gesto.
O Lavrador parado, olhando incisivo para sua flor. Boas tardes. A voz trovejou no silêncio da ribanceira. Certas vozes, nunca ouvidas, trovejam. No ermo dos seus dias, na distância do seu mundico, Tereza nunca ouvira outro trovejar-homem, que não o da autoridade de seu pai. Não havendo resposta, o desconhecido novamente tentou: não carece vexação, não, Doninha. Pode continuar em vosso rodar, em vosso brincar. Eu, cá por meu lado, continuo com meu roçar.
Tereza permaneceu imóvel; os olhos enfiados nos cabelos; as mãozinhas lépidas segurando o vestido grudado nas curvas. O trovão proferido era marcado e ritmado como uma cantiga nova nunca antes ouvida. O Lavrador recomeçou seu ofício. Foice. Tereza olhou com a sombra do olhar os golpes do instrumento de trabalho do estranho. Golpes rijos e determinados que dizimavam rapidamente as ervas daninhas de derredor. E o roçado se fazia...
A menina-moça temeu pela sua flor de pura beleza, recém-nascida. Aquela foice devastadora poderia dizimar também o encanto singelo e mero daquele Lírio intocado. Num esforço sobre-humano de vencer a timidez, Tereza, num sussurro soprado: o amigo não toque minha flor, não. Ela é novinha, novinha; recém floriu da primeira rubra floração. Cuido dela desde que era matinho inflor e nem cor tinha. Todos dias zelo pela viçosidade dessa belezura. Não quebre, não. Eu lhe peço, de favor, é proteção.
Redizente, o trovão trovejou novamente respondendo ao refrão da voz-menina: Doninha, não carece de ter medo; minha foice é de quebrar ervas mateiras e derrubar fronde inteiras; mas, flor de encanto e fermosura, que nasce do fundo de fontes, em clausura, no ermo de ribanceira, não quebro, não: respeito; protejo. Tais dizeres acalmaram Tereza como melodia cândida, mas uma força estranha e nova fez pressão no interior de seu peito-menina, e a menina-moça disparou fugidia pra segurança de casa. Era essa uma brincadeira nova, cheia de mistérios e anseios.
Não falou pra mãe do encontro na fonte. O coração palpitava, sufocante; uma quentura estrangulava a sua respiração cada vez que se alembrava daquele trovejar, daquela foice destruindo ervas altivas ou rasteiras. Poder e força máscula. Lembrou e relembrou cada palavra trovejada e cada sonoridade poemada. A proteção prometida... Sentiu um conforto; seus olhos se encheram de uma poesia que somente olho de menina resplandece; e os lábios sorriam um fio de sorriso ditoso que somente em boca de moça se reconhece.
Foi um dia.
Não via a hora de ouvir o chamado da mãe. Preocupação com a flor(?). Queria tocar seu Lírio, sentir seu perfume. Acariciá-lo. Confiara na força das palavras do desconhecido Lavrador. Proteção. Respeitaria. A manhã despertada brotara e Tereza não se conteve: vou eu, Madre, lavar meus cabelos na fonte. Felicidade. Olhou em torno e nada viu além das ervas do ex-verdíssimo teor, derrubadas pelo jugo da foice. Não o via. Teria partido pra sempre? Seu Lírio continuava límpido e luzidio em meio à romagem destruída; intacto, cheio de essências. Conforto. Um Lavrador quebra ervas daninhas, mas protege as flores primaveris.
Mas, nos olhos de Tereza, uma sombra de tristeza se fez surgir: queria agradecer ao homem pelo zelo com a beleza e pureza de sua flor-menina. Onde andaria ele agora? Que outras flores protegeria? Que descampados de meu Deus roçaria? Naquele dia, outras foram as descidas ao fundo da ribanceira, na labuta de buscar água, mas nada do estranho aparecer.
Naquela noite, Tereza dormiu uma noite sem estrelas, em que a lua era de um brilho maciço e cinza.
São coisas de moça-menina essas de noites sem estrelas e de luas cinzentas.
Ao nascer de outro dia, sem mando, sem nada, Tereza se sumiu pros cantos de seu paraisozinho. A esperança de rever e apenas agradecer ( em que queria acreditar ) o cuidado dispensado. Com a respiração ofegante e o coração em galope, chegou ao seu jardinzinho. Viu o já bem vindo amigo em seu trabalho de roçado. Parou assustada com sua própria precipitação e audácia e olhou longamente pro Lavrador que trabalhava incansável. Detalhou-o. A força e determinação dos golpes; o tronco altaneiro; as mãos enormes; o ombro vasto; os braços de mil abraços; as pernas maciças de tantas andanças; os cabelos da cor do céu que prenuncia chuva; no rosto moreno de sol, um risco de suor cortando; um fino cheiro-homem revoando naquela eterna brisa da fonte.
Tereza pensou que desfaleceria; não esperava ( ou esperava demais ) aquela atitude. Seus pés descalços procuravam um chão que havia fugido. E ouviu aturdida a força daquela voz: não tenha medo, bela, por vossa flor; nem por vosso secreto recanto; quero, sim, ser vosso amigo e guardador. Ao que Tereza redisse: vosso gesto terá de mim eterna dedicação, repleta de respeito e devoção. Então o moço, sentindo-se aconchegado, trocou passos decididos. Tereza se fez parada inda mais diante da aproximação. O Lavrador, conhecedor das artimanhas do cuidar de jardim de moças, lançou, com a possível suavidade esperada das mãos rudes de seu ofício, seu gesto em direcção à rubra flor.
Sentiu o coração se agigantar no peito-menina. Mocice. O Lavrador, já de em antes apercebido da chegada da moça, disfarçoso, interrompeu seu ritmo e olhou decisivo em sua direcção. E trovejou: a Doninha veja que nada houve com vossa flor; que, de flor donzela, sou zeloso cuidador. Era preciso dizer algo, pensou ela, mas era preciso usar toda a força pra vencer a barreira da vergonhice. Mas, audácia é propriedade de coração de menina-moça, e disse: bem vejo vossa atitude e muito feliz me faço eu nela; se ser amigo é seu querer, bem zele seu bem nela. O moço se alegrou dos dizeres da moça-menina; viu sua chance. Aproximou-se.
A moça-menina estremeceu e suspirou de temores pela segurança de seu Lírio recém florido. Foi com ternura e maciez que as mãos chegaram à cônica planta e dela retiraram o perfume inebriante que somente as flores-meninas exalam. Paradeza do tempo. Tereza em tremidão, imaginativa e sonhante. Nunca, ninguém vira sua flor; jamais alguém a tocara além dela mesma em brincadeiras e, agora, sentia-se embebida de uma estranha satisfação naquele carinho novo e floral. Olhou, ele, decidido nos olhos de Tereza, olhos que se fecharam imediatamente, fugindo. Respirava, ela, aquele cheiro desconhecido, mas prazeroso, de ervas verdíssimas derrubadas, que vinha com a brisa eterna.
( Nessas horas os homens têm essência de florestas derrubadas ). Não pôde determinar a direcção, mas percebeu que do Amigo recendia. O Lavrador alcançou com mão sorrateira sua afiada foice e com um cuidado infinito tocou o fio na flor que cedeu em sua tênue resistência. A moça pensou que morreria nas brumas daquilo que misturava sonho e realidade. A sua tão cuidada flor, colhida, carinhosamente colhida. Mas o fero e delicado toque do instrumento de lavra, ao contrário de desesperá-la, acalmou-a de seus inúteis temores. O rubor ingênuo do Lírio se ruborizou inda mais ( um vermelho de colheita ) e exalou sua essência nova.
(Nessas horas, surgem essências de semente ). Tereza acordou das brumas de sonho, da vertigem e do vagar dos campos floridos, e correu.
O coração foi a galopes, fugindo para se esconder junto da mãe, de onde demoraria um tanto mais por sair. E, no sorriso assustado e agora sabedor, surgiu um diferente tom. Sabia que o lírio colhido em fonte úmida preparava semente. E seu olhar brilhava de uma cor desinocente; uma cor nova; uma cor de flor-mulher.
Valdir Moreira Lobo,
Rio de Janeiro.
4 comentários:
olá
Já lá vão 3 dias que estou para te dizer..., que o BLOG...É UM VÍCIO...TERRÍVEL,
porque, 'tou para te dizer isso, MAS NÃO HÁ TMPO...porque tenho que bater um outro record, e quando não sou eu que está nessa função, é a ´Belinha.
E mais,
até na Câmara já meti o vício
IMAGINAS?...
BEIJÕES
O teu sorriso.
"a criança/mulher de ontem, hoje e amanhã"
Quem escreveu isto?.
Um beijo
Eu sou oautor desse conto "Canrtiga de Tereza". Sou professor e escritor de Curitiba, no Paraná - Brasil. Não sou do Rio de Janeiro, como vês.
Gostei muito desse blog, apesar de não ser muito das "informáticas", acabei por me achar aqui nas veredas da internet. Acho que a Gabriela Rocha Martins deve ter enviado esse texto, não foi?
Caso desejem, posso enviar outra de minhas histórias.
Abraço
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