16/05/2005

fases da lua em canto. quarto crescente

há um signo no outro lado da palavra.
a chamada linguagem sub-textual que Manuel Maria não entende.
essa, aliás, não é a sua área.
. tenta concentrar-se
e deixar para depois do exame a leitura do bilhete que Matilde escrevera e Rosarinho lhe deixara no vidro do automóvel.
resiste apenas dois segundos.
- preciso urgentemente de falar contigo. encontramo-nos, às seis, na Gulbenkian.
não. não faz sentido
lembra-se. o exame. o mundo. os amigos. todos os planos que, ao longo de seis anos, foi arquitectando. o estágio em Florença...Duarte...Bernardo...o convite da ONU para Timor...Gonçalo...Rosarinho...Filipa...a praia da Areia Branca...as noites quentes...corpos em suave abraço...Matil/Rosar
- preciso urg
talvez não!
não pode ser. não faz sentido
recorda-se da véspera. quando ao sair, encontrara Rosarinho e Filipa segredando...apanhara no ar..."a amiga grávida. Imagina! pai. melhor amigo."

Matilde entrou na sala devagar. o olhar em volta. um sorriso parado a meio. Rosarinho foi muito mais rápida. despachada. como sempre. aliás, fora ela que colocara, no vidro do carro do Manel, a folha de papel dobrada em quatro.
". melhor amigo...imagina!." - a frase dói - "pai."
não. não faz sentido
. o bilhete escorrega.
cai no chão.
Manuel precisa concentrar-se.
tudo depende daquele exame...

Duarte, despistado como sempre, entra na sala e "aterra" junto da secretária. senta-se.
- olá, Manel. que trombas, pá!
lê as folhas de exame.
parece que foi feito propositadamente cá p'ros ginjas.
.continua sem perceber o silêncio do amigo.
Manel, a malta safa-se. o exame é de caras, meu!
. o mesmo silêncio.
bolas. hoje estás apanhado de todo...não há pachorra.
mergulha nas perguntas/respostas. rói a esferográfica.
a imagem de Matilde sobrepõe-se. levanta os olhos e imagina-lhe o rosto meio enoberto pelo mar. os cabelos colados à face. a frescura dos corpos. o amplexo no calor da areia. Areia Branca. a noite...
sacode os pensamentos. xô. termina a prova.
precisas de ajuda?
. de novo o silêncio.
népia. não tenho estômago para "birrinhas de tipos café com leite".
prepara-se para sair. repara na folha dobrada em quatro, caída no chão.
. agarra-a.
- preciso urgentemente de falar contigo. encontramo-nos, às seis, na Gulbenkian
lê.
reconhece a letra de Matilde.
olha o relógio. dispara.

Rosarinho - que horas são?
o teste não me correu mal. e a ti?
acho que dá para safar - e
enquanto espera por Matilde, tem tempo para certificar-se de algumas respostas. Gonçalo. Diogo. Filipa e ela rodeiam a mesa da sôtora.
discutem pormenores e aguardam a saída. o toque. agudo. vibrátil.
Rosarinho deixa o grupo e junta-se à amiga. olha-a, pela primeira vez, com atenção
estranha
estás mal disposta?
não. é do calor - responde-lhe Matilde.
saem juntas.

às seis horas em ponto chegam à Gulbenkian.
por aqui, Duarte?
olá, miúdas. vocês sabem o que se passa com o Manel? tentei falar com o tipo, mas nem bom dia...está com um mau perder!
Matilde olha em volta.
Rosarinho, irónica como sempre, atira para cima da mesa mais uma das suas frases bombásticas
ah, não sabes? bom, também não admira num despistado como tu.
o Manel anda a atravessar uma fase a que os psicólogos chamam
depressiva
(ri)
os pais separaram-se e, segundo dizem, o pai...
...poupa-me!
com a idade dele e ainda com crises existenciais?
betices!
o jogo subtil das palavras acentua-se. o ardil.
Rosarinho inventa. Duarte acrescenta.
Matilde olha em volta.

há um silêncio no outro lado da palavra
não escrita.
Matilde levanta-se.
tudo faz sentido.
aproxima-se da porta. Manuel Maria estende-lhe um beijo.
a face.
entre os dois não há exames, testes de matemática, frases bombásticas.

Manel
pergunta baixo

e o teste?

positivo.

gabriela rocha martins

2 comentários:

Anónimo disse...

Belo conto.

Anónimo disse...

Surpreendente final na linha do absurdo.
gostei.