28/10/2005

A

A porta abriu-se. E foi nesse preciso instante que a chuva incessante deixou de cair.
O inspector foi encontrado. Sentado à sua secretária, numa das muitas salas de paredes cinzentas do instituto prisional: com o pénis flácido a espreitar pela fechadura das calças, a cabeça atirada para trás e os braços pendidos e moles ao longo da cadeira como os braços de um decapitado.
Parte da sua massa encefálica e sangue, parte das suas ideias e emoções, estavam ainda agarradas ao tecto, dando-lhe cor. Uma mancha escura esborratava toda a área branca do tecto acima da sua secretária num diâmetro de dois metros como uma garatuja infantil. Enquanto a arma fria, criminosa depois de já ter exercido a força, descansava indiferente junto aos seus sapatos de camurça.
O projéctil penetrara-lhe dois dedos acima da garganta e saira-lhe pelo topo da cabeça; traçara a linha vertical de um fio-de-prumo suspenso, mas ao contrário: como se a terra fosse o peso que empurra e o céu o íman que recebe. Mais, a bala abrira-lhe um buraco tal na cabeça, que podiam introduzir naquela abertura, dois, três dedos de uma mão comum, sem que estes voltassem sujos de qualquer vestígio de carne.
Agora era um homem morto.
Já não era o hábil e forte inpector, que representara e administrara durante anos e anos, um dos sectores mais importantes da segurança do governo. Agora era um homem morto. Mais ainda ontem, de pé, junto à janela onde vigiava todas as entradas e saídas do instituto, o inspector fumara profanamente um charuto oblongo e expirara o fumo branco como se fosse viver para sempre. Não tinham ainda passado, sequer, vinte e quatro horas desde a sua última reza. Desde a última vez que rezara: de olhos abertos, sem rosário e sem as palmas das mãos unidas, a um Deus em que só ele acreditava; pedindo-lhe: força, obstinação, poder.
Dois médicos forenses, por ordem expressa do governo, observavam agora, atenta e escrupulosamente, o cadáver sentado e ainda morno do inspector. Trabalhavam juntamente com outros investigadores, que vestidos com sobretudos cinzentos e rostos perfeitamente escanhoados, cobriam com um pó cor-de-rosa todas as superfícies verticais e horizontais daquela sala de paredes cinzentas, em busca de indícios, farejando sinais.
Falavam em voz baixa para não perturbar a morte. E formulavam dentro das suas cabeças - em silêncio, para que ninguém os ouvisse - algumas hipóteses: assassinato ou suicídio? E com o espanto aceso nos olhos, sem terem ainda provas objectivas sobre o que na realidade acontecera, aventaram uma conclusão: o inspector era agora um homem morto; e um homem morto é um homem que não tem dúvidas.
No corredor contíguo à sala do acontecido, e com apenas uma parede a separá-lo de todo este aparato macabro, o adjunto do inspector - aquele que de mais perto e durante mais tempo privara com o agora morto - dobrado sobre os seus próprios joelhos, chorava ao mesmo tempo que ria. Não se conseguindo perceber se a sua volumosa emoção era oriunda de uma dor impronunciável, ou antes de uma alegria extrema.
O adjunto do inspector, interrompeu por diversas vezes a comoção que o atingia, de forma a regularizar a respiração. E entre dentes chegou mesmo a murmurar:
- Não acredito que estejas morto.
E repetiu:
- Não acredito que estejas morto.
Sandro William Junqueiro, inédito, in "No céu não há limões".

3 comentários:

Anónimo disse...

O horrível transposto em texto literário.
A partilha consentida.
O real.

Anónimo disse...

E assim vamos tecendo imaginações...criativas!

Anónimo disse...

obrigada, meus queridos Amigos.

um beijo para os dois...