28/10/2005

desespero

Houvesse, ao menos, um restaurante perto para tomar um copo de água! Tenho uma sede enorme de infinito e não consigo dormir numa situação destas. Seria melhor voltar para o campo ou para a praia. Que importa? Que posso eu fazer se estamos numa sala de espera? Esperar por um comboio é ter sede de infinito. É sentir-se voar alto e depressa, como se lá de cima víssemos a terra coberta por uma espessa camada de nuvens. O campo ou a praia são sempre recursos de evasão que ainda se ligam com esta sede de infinito. Os restaurantes estão longe e a época está má para o negócio. Os turistas sentiram-se traídos e não querem mais voltar aqui. Tudo acabou. Não haverá mais férias. Não haverá mais esperança. Estamos mortos como se fossemos só palavras. Talvez estejamos só longe, do outro lado da fronteira.
A fronteira? Será que ainda não completámos o ciclo da nossa vida? Quem se esqueceu de pôr uma vírgula no testamento dos nossos antepassados? Mortos? Na fronteira? Como poderemos ter alguma coisa a declarar? Abram primeiro as portas e voltaremos atrás. Renovar esperanças é negar sempre o desastre, é não discutir qualquer coisa. Contrariar, isso sim, pode ser o descarrilamento do comboio a caminho da fronteira. Fazer esperar os passageiros é trair a excursão.
Augusto Mota, inédito, in "Metáfora,", 1962.

6 comentários:

Anónimo disse...

E assim vamos, de texto em texto, construindo paredes de solidões partilhadas.

Anónimo disse...

Quisera, Amiga Fernanda, utilizar esta legenda íntima de nosso comum amigo, Augusto Mota, para agradecer um outro registo tão gostoso quanto os que a sua criação consente - um Breviário de Textos Brevíssimos - "Sujeito( de seu nome ) Indeterminado"
Folheá-lo é encontrar, em cada folha, o que a imaginação de um "Mago" alcança. É o espanto que brota da primeira à última folha.
É a leitura sôfrega que não pára.
É querer mais e mais.
É a angústia da última página.
É a criação.
Obrigada ao Autor. Muito obrigada a quem mo ofereceu.
Obrigada, Fernanda Monteiro. Obrigada Augusto Mota, os amigos que, através da Maria Gabriela, há muito, passaram de virtuais a reais.

Anónimo disse...

E teremos mais isso para agradecer à Maria Gabriela ; a invenção de um palácio onde se fomentam amizades através das palavras e das imagens . O sentir e viver as emoções. Um abraço.

Fernanda.

Anónimo disse...

Vibrante texto traduzindo o desespero no plural. Nenhuma palavra é supéflua, cada uma é forte por si, criando na frase a polissemia que a torna universal. Quem nunca esperou um combóio com a ânsia de fugir até ao infinito? Quem não sentiu já esta sede de evasão, de infinito? Vem-me à memória, já distante, Cesário Verde olhando quem parte com a nostalgia de quem fica: "Felizes os que partem. Madrid, S.Petersbourg, o Mundo!" (cito de cor, desculpem).O Mundo, a fuga para o infinito, a evasão, pode ser encontrada numa simples praia - a fronteira. Escrito na década de 60, mas intemporal - " Contrariar, isso sim, pode ser o descarrilamento do combóio a caminho da fronteira. Fazer esperar os passageiros é trair a excursão. "
Gostei muito deste texto que li hoje pela prima vez.

Fernanda.

Anónimo disse...

... supérflua ... claro: peço desculpa pela "gralha".

Fernanda.

Anónimo disse...

Almirante!
as palavras são todas para si. eu, simples veículo, agora e aqui, estou a mais...

agradeço, no entanto, e fico particularmente sensibilizada ao saber que o "Palácio" é o "habitat" das emoções.
só por isso valeu a pena tê-lo criado.
lindo de morrer!