20/10/2005

a cabra

A cabra era uma couve agarrada pelo pescoço. Depois a assistência espantou a presa e tudo se esfumou na vertigem de um automóvel que passou. Dirigimo-nos às ruinas nos arredores da cidade. Foi então que no prazer de um beijo descobrimos o bombardeamento de dois aviões em luta. Subimos ao alto do monte para ver a queda do inimigo e, quando o silêncio alastrou pela floresta, corremos ao vale a avisar os camponeses. As aldeias ignoravam a luta e tivemos que percorrer todas as barracas da feira para acordar o povo. Porém, quando fomos ao circo não nos acreditaram. Nas tendas de pano fizeram-nos provar mil fatos até que caímos na cela da prisão municipal ao lado de uma prostituta velha e de um cauteleiro falido. Pela manhã o guarda agradeceu-nos o incómodo e soubemos, mais tarde, que ainda tinham chegado a tempo de salvar as colheitas do vale. Ardera só um pouco de mato.
A cabra, essa, roeu a couve e tive de lhe largar o pescoço quando a assistência voltou cansada da luta contra o fogo que os aviões haviam ateado. O automóvel, vi depois nos jornais que se espatifara contra uma árvore onde tínhamos estado a observar o bombardeamento. Parece que não morreu ninguém. As ruínas continuam a ser visitadas por muitos turistas.
Só a couve é que foi roída pela cabra.
Augusto Mota, inédito, in "Metáfora,", 1962.

10 comentários:

Anónimo disse...

Se eu gritar de espanto perante a loucura deste belíssimo texto quem poderá acreditar que gostei imenso?
Dirão - está louco!
Direi - estou, mas consolei-me.

Anónimo disse...

Espantosamente louco, feérico e espectacular este seu novo texto, Augusto Mota!

Anónimo disse...

De uma actualidade impressionante esta metáfora da cabra/couve ou da couve/cabra.
No Portugal/circo, Palhaços querem fazer de nós...

Anónimo disse...

Ah, sublime arpejo de sã loucura!

Anónimo disse...

Mediúnico presságio. Inolvidável texto. Sublime contexto.

Anónimo disse...

lindo, Rui, e, muito obrigada!

Anónimo disse...

ah, Manuel, como me sinto feliz com os vossos comentários...e como cabra ( sem segundas interpretações ) gostava de ser neste texto...

...é que assim o Augusto Mota não me pega pelo pescoço...por tê-lo publicado, não é, meu Almirante?

Anónimo disse...

quão perpicaz, Duarte!

Anónimo disse...

muito sã, Anamar...

Anónimo disse...

e muitos mais como este virão...prometo!

mesmo à revelia do Almirante!