24/10/2005

plenilúnio

Procuro o tempo entre os espaços claros que a Lua cheia deixa marcados no relevo suave das encostas. As árvores povoam de sombras os atalhos que nos levam às recordações de ontem, quando, no planalto sobranceiro à memória do corpo, cruzámos os gestos e os olhares ao ritmo dos segundos que pareciam esgotar a eternidade. Sobre estes campos enluarados estamos a reviver o percurso fértil pelas artérias da cidade e refazemos, no retiro da memória, o ardor da caminhada até ao cimo de nós. Majestosa vista essa sobre o cansaço que parecia querer esmagar a respiração, enquanto os olhos, bem abertos, pronunciavam silêncios e mais desejos! Como hoje, o luar invadia as janelas e atravessava as espessas cortinas da noite. A cidade não bulia como de costume. O movimento dos carros, ao longe, chegava-nos como se fossem ondas espraiando-se mansamente pelo areal. E a luz que recortava os gestos e beijava a escuridão reanima-se hoje, aqui, enquanto repetimos, como invocação, as mesmas palavras que ecoaram pelas ruas mais secretas da cidade.
Os segredos das cidades reanimam-se, assim, com as palavras que evoluem entre os gestos e a escuridão e que, por vezes, até se escondem na infância dos dias.
Abrimos o peito ao fulgor desta Lua cheia e deixamos que a natureza se entregue ao ritual cíclico de sentir a claridade vaguear pelo tempo que oculta a memória precisa dos gestos. De todos os gestos. Mesmo daqueles que, subitamente, vêm ao nosso encontro e nos repetem todas as palavras que gostamos de ouvir através das noites límpidas e frias de Inverno. Esses gestos ganham outro sentido quando, no segundo dia do segundo mês de cada ano, anunciam o novo percurso do corpo e da realidade e nos faz percorrer sendas perigosas no desfiladeiro das emoções, que este luar ainda mais excita.
Hoje não há concerto para elogiar datas e promessas. Os laranjais junto às fontes são já melodia fresca e festiva. As águas calmas reflectem o sorriso claro da Lua e a noite começa a minguar. Colhemos ainda romãs nos pomares à beira-rio e procuramos, no alvor de um novo dia, orquídeas selvagens que bastem para entrelaçar nos raios do Sol que, de mansinho, vai acordando a madrugada e a vida.
Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.

6 comentários:

Anónimo disse...

As palavras de Augusto Mota, qual remoínho,
fustigam-me a desoras, expondo tudo!

Anónimo disse...

Do chão até ao alto da cidade
vai este espaço todo, e o meu olhar,
na moldura de tudo o que vislumbro, grata!

Anónimo disse...

Vens de um outro tempo, de outras narrativas,
trazer o fulgor das manhãs, da claridade,
e adormecesses a voz perante o meu olhar extasiado.

Anónimo disse...

E o vento vai veloz, transforma o oceano dum texto a cintilar.

Acorda, ó meu País, do fingimento!

Anónimo disse...

gratos estamos nós e extasiados!

Anónimo disse...

quanta verdade, Fernando!