03/11/2005

As essências do mundo

Constituo-me entre fragmentos. -
Não quero abrir mais do que um espaço entre a névoa,
para devorar o fogo e gritar uma nova estridência.
Observo as árvores, ainda sem folhas,
os plátanos e as suas sementes, uma palmeira,
brumas violáceas.
Ontem escutei, ao piano, Grigory Sokolov, o universo
fendido, entre rosas e gerânios, pensei num verso
de Rilke:
- "Ich möchte einst im Frühling sterben"*
e no meu diário apressei os búzios e os aromas.
Nas suas folhas nadavam as pétalas e os lírios
devassados, entre barcos magoados, recônditas feridas.
Havia sangue, linfa, estames negros e cordões
de veludo.
Porque a primavera exuberante sangrava e eu bebia
a música e as essências do mundo;
os dias floresciam, dilatados entre diálogos
ininterruptos, como se os vulcões perdurassem,
porque sagradas eram as folhas, as ervas,
e a terra tinha a forma de um útero,
a primavera trazia, nas suas raízes, a flor
dos relâmpagos, cobrindo-se de líquido seminal,
e os dias nasciam do seu odre melodioso, envoltos
na penumbra,
a noite rasgando os seus mistérios vagarosos,
trazendo as mãos incendiadas, o coração coagulado,
os olhos cobertos de rosas obscuras, iluminadas,
irradiando as pulsões nocturnas,
de regresso ao espaço primordial,
de onde nasci, pela primeira vez.
Maria do Sameiro Barroso, inédito, in "Idades Sonâmbulas".
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* "Um dia gostaria de morrer pela primavera" ( trad. de Maria do Sameiro Barroso ).