17/11/2005

a árvore dos sonhos

Por prazer do sonho adormeço sob o cansaço da viagem da véspera e revejo os frutos que já repousam em minhas mãos. Todo o pomar de nossas intenções se abre às carícias do vento fresco e brando que murmura novos desígnios para futuras colheitas.
Continuo pelas margens do sono e do sonho e sorvo cada uma das sementes carnosas que tais frutos me oferecem em sua rósea aparência. São romãs, por certo, pois vejo-me a descansar os olhos na frescura da sua polpa, como se estivesse a preparar os ingredientes de uma bebida requintada. Ou de um tónico para todos os males que definham as noites e se atravessam nas paisagens agrestes de alguns sonhos opressivos.
Que estranho é este laboratório do sonho quando fazemos o jogo dos pequenos prazeres e deixamos que tudo aconteça e seja retribuído em oferenda simbólica! Por isso os frutos são intenções e cada árvore a sagração do nosso existir. Por isso temos de colher tanto fruto para amenizar a memória deles em nossas mãos e descrever cada gesto como louvor e purificação. É que a paz, a nossa e a dos outros, se define e é aceite quando tudo está bem conjugado na gramática dos nossos verbos particulares. De outro modo definharão as sensações já antecipadas com tanto prazer e o sonho não passará de angústia adiada, de criação subvertida, de vigília atormentada.
Vamos, pois, adormecer sabiamente e desejar que no pomar dos sonhos frutifiquem as romãs e as intenções que alimentarão o exercício dos dias.
Augusto Mota, inédito, in "Geografia do Prazer", 2000.

7 comentários:

Anónimo disse...

Muito bonito. Parabéns, Augusto Mota pela superior qualidade do seu texto.

Anónimo disse...

E mais uma vez fico preso à superior escrita de Augusto Mota.
Um abraço!

Anónimo disse...

Onde, de facto, começa a prosa e acaba a poesia?
Haverá fronteiras definidas, ou será Augusto Mota a excepção?
Leiam o texto e respondam-me se forem capazes.

Anónimo disse...

Que envolvente melancolia perpassa em cada palavra deste texto.

Anónimo disse...

Que não se pense em encontrar o mesmo Augusto Mota em todos os seus textos. Curiosamente este Autor apresenta-se-nos multifacetado. Quando pensamos que o captámos, ele desaparece para aparecer, mais tarde, com um texto completamente imprevisível.

Anónimo disse...

a imprevisibilidade, meus(inhas) Amigos(as), é caracterísitca do "Palácio das Varandas".
um beijo.

Anónimo disse...

Texto de esperança renascida pelo esforço do re/conhecimento da abundância colhida na "viagem da véspera". Pelas margens do sono e do sonho, o A. encontra os desígnios das colheitas futuras. Mas estas margens são escorregadias e tantas vezes resvalam para os "sonhos opressivos"...Seria bom que todos pudessem, através da arte e da palavra certa, encontrar o equilíbrio que se sente neste texto; nenhuma palavra/ideia está a mais. Mas, creio, foi preciso resvalar e não cair, muitas vezes. Pergunta a Anamar, muito bem; haverá fronteiras definidas? Não só entre prosa e poesia, pois não, Anamar? Entre criar um pomar para alimentar dias futuros e deixar apodrecer nas nossas mãos os frutos da véspera ? É tão ténue a fronteira, mas vence-se!