05/11/2005

B

Dali ouve-se o som de uma tosse seca e ininterrupta, vinda do quarto contíguo.
A mulher está sentada no rebordo da cama, seminua, virada de frente para a porta de quem entra. Usa uma voz rouca e pausada quando fala, um sorriso branco quando sorri e as unhas dos pés pintadas de um verniz roxo: a sua cor preferida.
Esta mulher nunca comeu amoras, mas a sua boca tem o sabor metálico de quem está permanentemente excitado. Se desse a provar a sua saliva aos homens com quem divide a cama, talvez estes descobrissem nela as amoras que nunca comeu: a excitação metálica e ácida que envolve permanentemente a sua língua e dentes como um segredo.
Apesar de aparentar uma desatenção permanente, um estado de inércia melancólica e simulada, aquela mulher fixa com um propósito o par de sapatos de camurça que descança ao lado da porta. Deitada, cobre a parte superior do corpo com um corpete de veludo azul deixando ao encargo dos olhos a visão de tudo o resto: as suas pernas longas e torneadas, as ancas largas e brancas em contraste com o seu púbis negro.
Dali ouve-se novamente o som de uma tosse seca e ininterrupta, vinda do quarto contíguo. Alguém continua irritantemente a tossir de forma aguda e ininterrupta. Facto que lhe parece passar despercebido enquanto fuma um cigarro ao mesmo tempo que afaga com a sua mão esquerda a fronha da sua almofada verde onde, debaixo desta, oculta uma arma.
O inspector, de pé, já sem calças, olha para ela enquanto segura o seu pénis erecto numa das mãos:
- Sou um cabrão, dizes?
- És.
- E diz-me lá quem é o cabrão que te arranja todos os clientes? Aqueles que te alimentam.
- És tu.
- E não me dizes o preço que levas a este cabrão?
- O mesmo de sempre.
- Não deveria ser mais caro visto ser eu... o cabrão?
- Mesmo que te cobrasse o triplo não deixarias de sê-lo.
- A menina é uma felizarda de eu gostar que me insulte. Sabia? Sempre admirei essa sua frontalidade e audácia. - É este o teu preço? - pergunta depositando um par de notas na mesa-de-cabeceira.
- Não tenho outro.
- E o que é que ele tem afinal?
- ...
- O que é que ele tem?
- Não ouves?
- Ouço. Não sei é como consegues fazer o trabalho a ouvi-lo tossir assim.
- É o meu filho.
- Por isso mesmo. Devias levá-lo ao médico.
- E quem és tu para dizer-me o que devo ou não fazer?
- E quem sou eu para dizer o que deves ou não fazer? Talvez seja simplesmente o homem que te paga: o cabrão, aquele pelo qual sobrevives.
- Mas no meu filho não tocas.
- Ai não! Porquê? Vai matar-me? A menina vai matar-me?
- Podes ter a certeza. Se lhe tocas com uma única das tuas unhas encardidas és um homem morto.
O inspector ri-se ao aproximar-se dela. E oferece-lhe o seu pénis erecto para as mãos.
- Vá toma, menina, brinca com ele.
- Não quero.
- Então e o que fazemos ao dinheiro? Deitamo-lo fora?
Sandro William Junqueiro, inédito, in "No céu não há limões".

6 comentários:

Anónimo disse...

Diabólicamente crú. Escrito num português vernáculo onde cada palavra ressoa e magoa.

Interrompe-se onde deveria começar...Muito bem mantido este suspense

Anónimo disse...

Na sequência do outro texto, este parece-me, no entanto, mais conseguido, porque objectivamente se me apresenta despido de todo o preciosismo literário.

Anónimo disse...

Ousado, este seu texto, Sandro!
Ousada publicação a vossa, Gabriela!
Parabéns, pela desenvoltura de espírito...

Anónimo disse...

Um estilo muito pessoal o do Sandro Junqueiro.
Este jovem escritor, poeta, declamador e com o Aires artista, tem na diversidade de estilos o seu ponto muito alto.
Gosto da escrita desenvolta e, simultaneamente, arrojada deste jovem promissor.

Anónimo disse...

E, de seguida, mergulha-se neste louco texto, para gritar o nexo do desconexo.

Anónimo disse...

meus amigos, na literatura como na arte não há vis preconceitos. quem assim pensar, desista, por favor, de nos visitar...
o "Palácio" é um espaço aberto, de liberdade, e, fundamentalmente, de criação. quem a limite por teias ou preconceitas coarta-a e enfraquece-a.
o acto de criar, aqui, é pleno. livre. arrojado se e quando necessário.
este é o nosso bilhete de identidade.