09/11/2005

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / A Lua e o Sol

Falar de opostos é uma estimulante questão porque quase sempre nos debruçamos à cerca da sua indissociabilidade. O planeta Terra não veria nunca os seus encantos se Sol e Lua não lhe facultassem essa experiência. Existimos tal como existimos, frutos desse casamento talhado para durar, casamento esse que parece não conhecer o tédio inerente a essa condição; se não, vejamos: o eclipse do Sol: o eclipse total do Sol, é um momento mais do que astronómico, é um instante mágico, sedutor, astro-erótico. Ainda há bem pouco esse acontecimento se deu, estávamos no Estio, num estio de Lua-cheia! Suavemente a Lua enceta a rotação do encontro... o Sol fixo e em êxtase parece arder ainda mais... aos poucos começam a alinhar o inevitável momento e nós encantados, surpresos, olhamos pássaros que nessa manhã recolhem sendo ainda manhã, ouvimos cães latindo e uma brisa que nos suaviza num mundo que agora gira ao contrário. Um cadinho do universo tomou conta de nós, e tal como nas núpcias, surge o momento da transfiguração; aí cerram o postigo do mundo, e durante um instante, nós, os convidados, espectadores indefesos perante a maravilha, pressentimos que aquela escuridão súbita nos remeteu para fora do mistério cósmico, e que da plenitude espelhada não sabemos absolutamente nada.
Imaginemos que a sedutora e quiçá sempre caprichosa Lua seduzisse de tal forma o astro enfeitiçado, que dissesse: - Agora vou ficar no centro do alinhamento, imóvel, farta, até me fragmentar de paixão e pasmo. Do meu esposo celeste verão apenas a auréola luminosa que coroa o meu corpo!
Imagine-se, porque ao falarmos de Lua, estamos a falar também da imaginação.
De todos os louvores com que Eros me presenteou, posso afirmar que nunca vivi um momento tão inefavelmente amoroso, tão eroticamente elevado, como aquele que pressenti nessa manhã de Agosto onde uma gotícula, um átomo, das múltiplas formas que é chamado o amor de Deus, visitou a Terra.
Comecei a pensar que o milagre é uma equação magnífica, rigorosa, e que, devido à perfeição que encerra não nos é dado ainda vivê-lo, mas frequentemente, é afinal uma consequência lógica de todo o estado harmonioso.
Tinha nove anos quando o homem chegou à Lua, recordo-me que era também um dia de Verão. Menina idealista e sonhadora, a partir das primeiras imagens enviadas que me fascinavam como os filmes em câmara lenta, decidi logo ali a minha futura profissão: iria ser astronauta! Estava de tal forma convicta desta vocação que a partir de aí não pestanejava quando me perguntavam o que queria ser; as pessoas sorriam desta legítima e bizarra opção o que rapidamente me deu a perceber que isso não teria viabilidade. Decidi não ser mais nada. Indagava na solidão do incomensurável espaço que a infância tem, olhando ao redor, porque razão não podia sair daqui e ter a mais apropriada das actividades. O lado apolíneo reclamava liberdade, os grandes espaços, as alturas... o lado lunar exultava com a protecção matriarcal da avó Lua, senhora de todas as profecias, lavradeira de sonhos e tecelã das minhas agora algumas faculdades. Intimamente sabia que o Sol é por natureza invictus, invencível. Ele volta sempre a nascer nesse belo culto à natividade celebrado no solstício do Inverno. Mas a Lua, o nosso cordão de prata, quando morre, não nasce mais: a nossa Lua-mãe, o lado materno quando expira. Estar em desamparo é estar nesse grande vazio lunar e essa brecha aberta ao infinito, dói. Tal como uma queda em solo estranho, só a Lua emite pela alba o seu mágico feitiço que é o orvalho, quais lágrimas de uma mãe ausente - porque uma mãe ausente é sempre um corpo inanimado. Nos mitos eulesianos sempre que Perséfona volta aos Hades, a natureza morre, a vida suspende e pára. Quando regressa para sua mãe, a natureza renasce e um ciclo farto e vivo recomeça. Estes são mitos lunares, vida e morte o mesmo que dizer pleno e vazio.
O Sol vibra com outras dicotomias, tal como o fogo e a luz. Ígnio, infernal num, divino radiante noutro, Apolo numa quadriga de ouro, o coração redentor de Cristo plexo solar, pois todo o universo tem gravado, na memória cósmica, as formas do Coração. Foram formadas galáxias com corações de formas exactas, poeiras cósmicas e nascimentos de estrelas, todos resultantes desta forma e não me contenho agora de relatar um facto simples, mas que me tem surpreendido: embora não coma batatas, este é um alimento que se tem naturalmente em casa e pela quinta vez encontrei-as no desenho perfeito dessa forma. Dado que se trata de preciosas miniaturas, gravei magicamente o nome da minha filha Rafaela. Talvez o espírito da natureza faça aquilo que nem Pátria, nem amigos, nem sociedade estejam interessados e sensibilizados para fazer: trazê-la de volta de um exílio onde está limitada a estar. Penso que a Terra nos está tentando dizer qualquer coisa de muito belo e urgente. E quem sabe mesmo se o Sol e a Lua depois de completadas as suas revoluções, rotações, materializações, desocultem por fim, no seu cerne, a imagem de um esplêndido coração que durante uma assombrosa fenda do tempo universal, ardeu e chorou de amor por nós.
Amélia Vieira, inédito, Janeiro 2004.

9 comentários:

Anónimo disse...

Intenso, lindo e mágico este texto de Amélia Vieira.
Sabe a pouco.

Anónimo disse...

A sensibilidade feminina exposta num texto de superior linhagem.
Bem estruturado, belo, e, utilizando as próprias palavras da autora - que dói.

Anónimo disse...

Paragem mais do que obrigatória.
Tudo fica suspenso nas palavras.
Há uma química que nos chega a magoar. Tudo perfeito.

Anónimo disse...

Jogo literário de superior qualidade intersectado entre a fantasia lunar e o eclipse solar, num texto de antologia.

1 beijo.

Anónimo disse...

Não mais seja permitida a escrita às Mulheres...de primeiríssima qualidade!

1 beijo ( pela puxão de orelhas que vou levar a seguir, não é Gabriela? )

Anónimo disse...

Sedutoramente visionária esta imagem de casamento entre o Sol e a Lua. Texto construído sob a influência astral de grande positivismo.
Uma leitura super agradável.
Um conselho a dar. Uma visita obrigatória.

Anónimo disse...

Estranho e desconcertante texto de Amélia Vieira, onde a autora se movimenta em meandros literários muito pouco ortodoxos.
Gosto da perplexidade temática onde os deuses gregos coabitam com o solstício de Inverno, com o eclipse solar,e com a lua e o sol.

Anónimo disse...

como adivinhou, Fernando?

um abraço, meus Amigos.

Anónimo disse...

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