13/11/2005

C

Agora um estranho vento experimenta X: as copas agitam-se freneticamente degladiando o espaço e a luz; os galhos quebram-se como palitos nos dentes; as folhas tremeluzem como se gritassem, para depois, mudas de tanto apelo estéril, caírem exaustas do alto, como pássaros feridos.
Na terra, as árvores são olmos, pinheiros e ciprestes, romãzeiras e macieiras.
Nos canteiros são rosas, gerberas e lírios. E há também, por vezes pássaros que, ocultos no coração das árvores, ameaçam o canto partindo o silêncio em dois.
No jardim existe um banco.
Uma ferrugem verde alastra-se pelo metal carcomendo-o como peste. A sua madeira, gasta e descascada pelos suscessivos sóis e tempestades, está também ela oca e pútrida. Todos os cães vadios vêm-lhe urinar nas pernas e todos os pássaros distraídos lhe defecam o assento. Mesmo assim este é o banco preferido do pequeno. É sempre nele, que o pequeno se senta quando vem ao jardim. É sempre nas suas costas que, com uma navalhinha que traz oculta no bolso das suas calças o menino desenha: um menino uma casa uma bola um sol um peixe e uma estrela. E é também nele sentado, que, no Verão, o pequeno lambe uma bola de gelado, vendo o sol desaparecer enxertado atrás das gargantas das gruas que imponentes despontam no horizonte.
O pequeno chega a correr e a tossir. O vento sopra de norte. O pequeno fita o céu, senta-se no banco e tosse novamente. Um fio de ranho amarelo espreita o jardim pendendo-lhe da narina esquerda. O pequeno leva a mão ao nariz e depois às calças afiando os dedos como facas. De seguida olha para oeste e vê um vulto deitado junto a um dos canteiros. Num salto, põe-se a correr na direcção do canteiro. Corre com as pernas arqueadas, sentindo nos olhos o frio e o vento. Quando se aproxima do volume quieto, ouve o coração bater-lhe por dentro como uma máquina centrífuga e leva as mãos encardidas à boca desdentada.
É ele, diz o pequeno.
Um corpo coberto de sangue jaz a seus pés. O cheiro pesado que se cheira é o cheiro da morte quando se desata. A decomposição avança rápida: um sem número incalculável de larvas visíveis já lhe trabalha o interior; moscas gordas e verdes e outros insectos de aspecto repelente rodeiam-lhe os olhos, o nariz e a boca, a barriga e as pernas.
Uma orquestra de asas estéricas sarapintam todo aquele corpo rijo numa zoada infame.
É ele, diz o pequeno.
Trinta lágrimas sujas descem-lhe como berlindes pelo pano do rosto. O pequeno tenta enxugá-las, com as costas da mão. Tosse. O ranho pende-lhe da narina como um yo-yo amarelo que ele puxa novamente para dentro. Agacha-se junto do cadáver. Afasta com gestos veementes os insectos mais gulosos e afaga com a ternura da ponta dos dedos o lombo arrefecido. Chora enquanto o vento lhe assobia ao ouvido todos os nomes daquilo que encontra. E com a raiva a pôr-lhe saliva na boca e a pele das maçãs do rosto esborratada, o pequeno diz:
-É ele. Está morto - grita.
Sandro William Junqueiro, inédito, in "No céu não há limões".

5 comentários:

Anónimo disse...

Diabolicamente crú, como aliás é apanágio do jovem Sandro.

Anónimo disse...

A maneira cáustica como o Sandro trabalha algumas imagens lietrárias chega a ferir as pessoas mais sensíveis, tal a crueza das suas descrições.
É o hiper - realismo levado aos extremos.
Porém, gosto dos seus excessos.

Anónimo disse...

Mais um texto de arripiar os pelos dos braços tal a crudelidade do mesmo. As imagens são do realismo chocante, mas credível.
Muito bem construído.

Um abraço deixado ao princípio da noite!

Anónimo disse...

Será que, à partida, podemos marcar um novo encontro para 5 de Dezembro?
Fico à espera.

Anónimo disse...

porquê 5 de Dezembro, Maria Luiza? não será, antes, 3 de Dezembro?

um abraço, amigos.