26/06/2005

1 primeira narrativa da cidade

Que estranha sensação de horizonte! Ser fresta ou ponte é, todavia, o enjoo do mar ao longe e a vertigem do vento que me açoita. A minha fortaleza já não domina a paisagem. Vivo agora retirado em penitência. Não quero nada. Não procuro nada para além deste horizonte que me envolve. É belo este envolver de horizonte. Sabe bem, apesar de tudo, sentir o mar ao longe e avistar a cidade lá em baixo. Então agora que sou senhor de três cidades quase confundo a sua posse. Vivo em Azáfama. Ultrapasso sempre Barbacã. Conquisto Metáfora a cada passo.
Esta minha posse é um voar constante entre cidades. É não possuir na realidade, para querer possuir. É possuir para desejar outra realidade.
Azáfama perde-se em ritmo. Barbacã é muralha delida pelas águas infiltradas. Metáfora é a grande fortaleza do poeta. É um abandono do tempo ao ritmo do espaço. É um definir as coisas com o seu próprio ritmo. Ritmo é noção constante no poeta. É sempre ritmo esta impressão de marulhar distante e de vento em vertigem. É ritmo o alar de castelos e de cidades, esta permanente sensação de fresta que ouve o mar ao longe e vê pontes transpondo obstáculos a cada instante. É ter fé naquilo que se vai embora, no destino um pouco cruel que nos foi traçado. É acreditar na absolvição do tempo quando nos sentimos limitados na exiguidade de um café, ou permanência em chávena de café ou, mesmo, copo de água em mesa de café. É não confundir confusão com uma tendência imediata para o discurso absoluto de todos os objectos, para uma relacionação integral da matéria e da forma, para um conhecimento total da vida e dos meandros que a experiência nos vai fazendo vencer.
É este ritmo inicial, esta recordação de uma vida já vivida algures, em nossos sonhos de hoje, que o poeta procura em Azáfama e é esse encontrar imediato que o transporta subtilmente a Metáfora, onde toda a experiência se faz poesia, numa aglomeração de imagens belas e saudosas que inibem o tempo e limitam o futuro a um viver presente.
Depois vem a posse da cidade. Mas que mulher adulterou o meu ritmo em Azáfama? Quem ousou vencer escaladas de montes íngremes e fazer de mim mercado semanal? Onde jaz agora o meu templo e as aras onde todos os dias invocava glória e ritmo para a minha vida? Não, não me dêem música. Não queiram arrebatar-me sentimentos que não possuo. Não finjam de hipócritas. Sejam mesmo hipócritas. Amanhã irei pessoalmente absolvê-los. Sim! E não me venham depois agradecer, nem, tão pouco, pedir perdão. Quando se erra já tem que se estar a pedir perdão. Para quê, então, repetir o erro? Para pedir outra vez perdão? Sempre sois muito inocentes. Aprendei a vida! Depois, sim, cantem Azáfama. respirem Azáfama. Comam em Azáfama. Até lá sinto que a cidade me pertence.
Que bela sensação esta de possuir uma cidade! Tenho ruas, caminhos, estradas e, até, avenidas. Depois sempre é bonito passear uma cidade, ver as montras caminhar connosco e sentarmo-nos nas cadeiras que o café nos oferece. Por vezes passa um amigo dentro de uma loja e pára para conversar. Há outros amigos e ainda mais amigos. Normalmente estas nossas cidades estão cheias de amigos. E quando temos a sensação de ter passado por nós um jardim cheio de sol, cheio de adolescentes e, até mesmo, lindas flores?! Nessa altura já devemos estar fora de Azáfama. Azáfama não costuma ter destes jardins tão próprios de Metáfora. Metáfora é só cidade para poetas e as adolescentes têm sempre cabelos azuis e as flores existem em toda a cidade como campo em Primavera. Então sinto recobrar o ritmo neste ondular de cabelos azuis e borboletas em metamorfose. É verdadeira posse este ritmo que se esvai no odor dos campos e se identifica com a criação inicial.
O poeta tem uma necessidade imperiosa de volver ao início, de construir o todo que o pode definir. Por isso recusa. Recusa sistematicamente. Faz ritmo nesta recusa e supõe ritmo em uma outra aceitação, que constrói em ardor de posse e esgares de um esvair que é retorno, ou a conquista da cidadela.
Este possuir desenvolve-se em lenta gestação que muitas vezes aborta naturalmente, ou vinga em momentos de clareza absoluta. Nasce, então, o feto, desamparado e perigoso. O poeta cai em delírio e ele mesmo corta o cordão umbilical com o machado da lenha, violento e infeccioso, sem recear deseperos ou críticas. Depois corre absorto pela cidade e quando encontra assistência submete-se a um absorver que disfarça o esforço e retempera os ânimos. É como toda a gente. Perde-se no ritmo que eles criaram e domina-o com as suas associações. É um poeta em busca de vida.
Augusto Mota, in "Metáfora", 1962 ( inédito )

3 comentários:

Anónimo disse...

Que estrondo de texto.
Metáfora sobre metáfora, inconcebível o mote, ó Mota!

Anónimo disse...

Quando for grande quero escrever um texto assim
!azul!

Anónimo disse...

subscrevo a negrito e com maiúsculas o que ambos escreveram...
...
mantenham-se atentos aos restantes textos. no fim, falamos, certo?