27/06/2005

Dia 18, 06:27 ( Caderno do algoz )

(...)
Hoje é terça e chove. Como não conseguia dormir, decidi sentar-me para escrever. Sei que há escritores que gostam de escrever, esgotados e só de noite - ao contrário de mim que prefiro as manhãs - sem quase poderem abrir o par de pálpebras; como se a noite fosse a única admirável amante das ideias, das palavras e do silêncio e Deus o seu mensageiro nocturno, ávido de revelações e de sílabas. Mas eu ainda não sou escritor. Outros são-no com certeza. Eu não. E a esses, ou pelo menos à maioria deles, é fácil escrever e acreditar em Deus - os que acreditam - durante a noite. Eu, contrariamente, gosto das manhãs. Gosto da frescura e da luz limpa das manhãs. Gosto do cheiro a pão fresco e dos bolos. Gosto de sentir no rosto o descaramento calado do vento. Gosto da geada branca que cobre as ervas como uma neve fingida. Gosto da primeira luz e da força dos primeiros raios. Gosto também dos primeiros sorrisos e do sabor da boca fresca depois de lavada. Há muitas outras coisas de que gosto embora não pareça. Mas do que eu gostava mais, do que eu gostava mesmo, mais que tudo, era de poder escrever todas as manhãs e acreditar em Deus sempre. Mas todas as manhãs, acordo, levanto-me, lavo-me, defeco, como, visto a farda, vou trabalhar e depois há esquinas e cafés onde Deus não me encontra. Deus não me vê ou eu já não o vejo a ele. Então que seja a noite a aquecer-me as unhas. A articular-me os dedos. O triste é que muitas vezes adormeço quando penso que é agora. Que é agora que vou começar a escrever. Antes ainda mesmo de começar. Pois doem-me as costas e pesam-me as persianas. Tudo faz parte do mesmo plano. O cansaço agregado à noite e os olhos às costas. Ainda assim sento-me. Aperto a mão - não essa, a que não existe, mas a outra, a que escreve - à caneta. E espero. Tenho que esperar. Tenho que me sentar e simplesmente esperar. Olhar o peixe que gira no aquário, ainda faminto ou à procura da fome. Olhar a tua fotografia, a preto e branco, postada em cima da escrivaninha, onde tu sorris cinzento. Bocejar. Ajeitar o nariz. Coçar levemente a parte mais funda de mim. E endireitar-me, sentar-me recto. Cerrar os olhos e ouvir o lado de dentro. O lado opaco. Ouvir as palavras fechadas que ardem aos poucos pelas paredes da casa. Que procuram cabides onde se pendurar; fatos completos, sem identidade, onde se intrometer, saias, gravatas, sobretudos, sapatos. Emoções sem rosto. Lembranças sem cheiro. Não sei porque escrevo. Sei porque tenho de escrever. O que é totalmente diferente. Tudo tem o seu mistério.
Mas porquê tudo?
Estou sentado e chove. Não consigo parar de chorar. A dor é forte. É como se estivesse lá. Ali, no lugar onde sempre esteve, a olhar para mim, a atormentar-me, a dizer-me: Não valeu de nada. Não valeu de nada. Não valeu, pois não? Se não é possível fugires? Se não é possível não teres medo?
Para lá do vidro, a manhã começa a cansar a noite que se esvai como o sangue num pulso cortado. O horizonte é cinzento e roxo. Todas as sombras se confundem, todos os animais e homens também. Esta casa tresanda a mofo. É pobre e triste todo o ano. Embora da janela da sala eu possa espiolhar o mundo. Chamar mundo a isto. Abrir a janela e respirar. Ver a cidade, os edifícios, o jardim, a praça, os entes que passam, os cães que latem, e imaginar que as gruas de cabeça de martelo são apenas girafas amarelas, debruçadas sobre as árvores, alimentando-se das copas em pleno exercício de liberdade. E mesmo assim, com tanta evidência, com tanta realidade, não ambiciono outra vida. Não almejo outra janela. Não tenho coragem. Não tenho coragem para esta vida. Não tenho.
A minha casa é igual a todas as outras casas, embora as suas paredes sejam pintadas de azul. Anil. É como todas as vidas, todas as acções, humanidades e humidades, todos os medos e raivas, perpassassem, também, por estas mesmas paredes e recantos, inflamando primeiro o ar, depois os pulmões, deste aroma nocivo e familiar a um bolor humanitário.
As casas são como esqueletos de almas. Porquanto os homens expiram, deixando-se morrer; enterram-se, acolchoados ao caixão; são comidos por larvas, servem de proveito; e o que daqui sobeja são apenas ossadas, fotografias, tectos e paredes rebocadas.
A chuva entretanto cessou. Já não a ouço cair. A mão deixou de me doer. Já não a tenho outra vez. O vulto do homem corajoso, do homem sem guarda-chuva, do homem anónimo que enfrentava a intempérie vestindo um impermeável amarelo, também desapareceu.
Os vidros estão sujos. As ruas estão limpas. As nuvens espapaçadas. Hoje é terça. Primavera. Depois será quarta. Quinta e sexta. Sábado e domingo. E segunda outra vez. E terça. E terça. Sempre terça como um terço. E outra vez, Verão, Outono, Inverno. E sábado. E eu sentado. Já um homem que não consegue mais chorar.
Há coisas tão evidentes que não encontro palavras.
Sandro William Junqueira, in " No céu não há limões", 2005 ( inédito )

3 comentários:

Anónimo disse...

De facto um leitor, face a este texto, sente-se arrastado pela vertigem da prosa, da qual se destaca um tom lúbrido, numa completa subversão interior.

Anónimo disse...

Permite a cada um de nós dosear expectativas e evidências, dirigindo a nossa compreensão através de instantes, aparentemente desconexos, mas cujo sentido lhe é conferido pelo modo de ler

Anónimo disse...

Obrigada