10/06/2005

Canção VII


Luís de Camões Posted by Hello
Manda-me Amor que cante docemente
o que ele já em minh'alma tem impresso
com pressuposto de desabafar-me;
e por que com meu mal seja contente,
diz que ser de tão lindos olhos preso,
contá-lo bastaria a contentar-me.
Este excelente modo de enganar-me
tomara eu só de Amor por interesse,
se não se arrependesse,
coa pena o engenho escurecendo.
Porém a mais me atrevo,
em virtude do gesto de que escrevo;
e se é mais o que canto que o que entendo,
invoco o lindo aspecto,
que pode mais que Amor em meu defeito.
Sem conhecer Amor viver soía,
seu arco e seus enganos desprezando,
quando vivendo deles me mantinha.
O Amor enganoso, que fingia
mil vontades alheias enganando,
me fazia zombar de quem o tinha.
No Touro entrava Febo, e Progne vinha;
o corno de Aqueloo Flora entornava,
quando o Amor soltava
os fios de ouro, as tranças encrespadas
ao doce vento esquivas,
dos olhos rutilando chamas vivas,
e as rosas antre a neve semeadas,
co riso tão galante
que um peito desfizera de diamante.
Um não sei que suave, respirando,
causava um admirado e novo espanto,
que as cousas insensíveis o sentiam.
E as gárrulas aves levantando
vozes desordenadas em seu canto,
como em meu desejo se encendiam.
As fontes cristalinas não corriam,
inflamadas na linda vista pura;
florescia a verdura
que, andando, cos divinos pés tocava;
os ramos se abaixavam,
tendo enveja das ervas que pisavam
- ou porque tudo ante ela se abaixava -.
Não houve cousa, enfim,
que não pasmasse dela, e eu de mim.
Porque quando vi dar entendimento
às cousas que o não tinham, o temor
me fez cuidar que efeito em mim faria.
Conheci-me não ter conhecimento;
e nisto só o tive, porque Amor
mo deixou, por que visse o que podia.
Tanta vingança Amor de mim queria
que mudava a humana natureza:
os montes e a dureza
deles, em mim, por troca, trespassava.
Oh, que gentil partido:
trocar o ser do monte sem sentido
pelo que num juízo humano estava!
Olhai que doce engano:
tirar comum proveito de meu dano!
Assi que, indo perdendo o sentimento
a parte racional, me entristecia
vê-la a um apetite sometida;
mas dentro n'alma o fim do pensamento
por tão sublime causa me dezia
que era razão ser a razão vencida.
Assi que, quando a via ser perdida,
a mesma perdição a restaurava;
e em mansa paz estava
cada um com seu contrário num sujeito.
Oh, grão concerto este!
Quem será que não julgue por celeste
a causa donde vem tamanho efeito,
que faz num coração
que venha o apetite a ser razão?
Aqui senti de Amor a mor fineza,
como foi ver sentir o insensível,
e o ver a mim de mim mesmo perder-me.
Enfim, senti negar-se a natureza;
por onde cri que tudo era possível
aos lindos olhos seus, senão querer-me.
depois que já senti desfalecer-me,
em lugar do sentido que perdia,
não sei que me escrevia
dentro n'alma, coas letras da memória,
o mais deste processo
co claro gesto juntamente impresso
que foi a causa de tão longa história.
Se bem a declarei,
eu não a escrevo, da alma a trasladei.
Canção, se quem te ler
não crer dos olhos lindos o que dizes,
pelo que em si escondem,
os sentidos humanos lhe respondem:
bem podem dos divinos ser juízes.
Luís Vaz de Camões, o mais célebre dos escritores portugueses e o maior poeta de Portugal, autor da epopeia nacional "Os Lusíadas", nasceu pelo terceiro decénio do séc. XVI e faleceu a 10 de Junho de 1580.
Quase tudo na vida de Camões é incerteza.
Todavia, a sua primeira biografia vem a ser escrita em 1613, por Pedro de Mariz, livreiro em Coimbra, no tempo em que Camões ali vivia, mas o que nem ele nem ninguém nos dá de decisivo é a indicação do local e data do seu nascimento. Como sucedeu com Homero, várias localidades disputam o facto de terem sido seu berço, mas Lisboa e Coimbra apresentam mais probabilidades. Esta última, por ter-lhe condicionado o seu honesto estudo de humorista. A primeira, a sua longa experiência social...
A sua poesia lírica, poesia de circunstância porque emerge da própria vida, lega-nos, porém, um preciosíssimo valor autobiográfico, já que nenhum contemporâneo seu, dele se ocupou, com a atenção que os séculos lhe veicularam.
( adaptado do estudo biográfico de Hernani Cidade )

Sem comentários: