19/06/2005

( carta anexada ao caderno do algoz ) - Parte I

Chamo-me António quando mo perguntam.
Nome pelo qual também chamavam o meu pai.
E embora te conheça e te acredite e muitos me questionem sobre a tua condição, ao contrário de ti, eu não sei o teu nome. Justificado está, assim, o espaço em branco onde deveria escrever o remetente, a quem é dirigida esta carta.
Não é minha intenção criar falsas suspeitas, fazer crescer os incréus ou confundir-te erroneamente. É simples. Fica apenas entre nós: eu sei quem tu és;
tu sabes quem eu sou.
Não consigo imaginar quantas cartas já te foram escritas e dirigidas com esta mesma missiva ou semelhantes, com os mesmos medos e propósitos, ou outros desencantos e melancolias. E se tantas já foram as palavras usadas e repetidas, porquê este contínuo fascínio e doença de usá-las?
Porquê continuar a trazê-las amordaçadas à boca? Ou a fermentá-las no peito? Com um qualquer intuito: ou de serem escritas, ou manipuladas, ou silenciadas, ou desmentidas, ou ridicularizadas ou ditas?
Sei pela experiência que a vida tratou de me ensinar, que quase todas foram usadas a despropósito como o tempo, e que o tempo também foi ele manifestamente desperdiçado. Mas não é para isso que elas servem? Que ele serve? Para que servirão?
Mas o pior de tudo não é usá-lo a despropósito ou gastá-las de forma imprópria. O pior de tudo é o arrependimento. E é mesmo. O pior de tudo é chegar à hora do arrependimento, arrependido. Ao segundo ínfimo e sub-reptício ( que agora me atravessa ), e que diluído num pressentimento de febre, irrompe pela carne e alastra o seu vínculo visceral como um estilete de cima abaixo; lacerando entranhas; trazendo lume e álcool à fogueira extinta de um passado já morto.
Mas não é possível esquecer.
Não é possível.
Sei-o. Nem o bem nem o mal.
Tu próprio também o sabes. Por que me conheces. Passaste por mim todos os dias.
( não me viste? )
Como eu pelos campos e depois pelas esquinas das ruas, cruzando-me com o vento, os bichos e as gentes.
A razão desta carta. A razão porque te escrevo? A razão porque me lês?
Faço hoje cem anos e estou só.
( sei que o sabes )
Escrevo-te estas linhas com uma mão centenária, trémula e só.
( desculpa-me a caligrafia )
Sempre estive só. Ou quase sempre. Agora já não me chamo António porque não mo perguntaram. Já ninguém mo pergunta.
Um dia tive um pai, uma mãe e cinco irmãos. Todos homens. A causa de sermos tantos e todos machos ( como diria o meu pai António ) é que a nossa mãe sempre procurou uma menina que nunca nasceu. E procurou-a até aquela manhã em que o meu irmão mais novo escapou-se-lhe do ventre e aflorou para a vida por entre as pernas; arroxeado e aos gritos: um ratinho amarrotado e ensanguentado com pouco mais de dois kilos. Ao primeiro vagido a porta logo se abriu, e entrou o meu pai António; soturno, carrancudo e besta, para se certificar da masculinidade do novo rebento.
- Escusas de tentar mais Eufémia, pois nunca te darei uma fêmea. Disse.
- Está provado. E ainda bem.
E assim ficámos seis. Todos homens. Todos machos como ele dizia.
(...)
Sandro William Junqueira, excerto, 2005

1 comentário:

Anónimo disse...

O fosso intransponível entre as coisas e o seu significado não é apanágio exclusivo da Poesia, porque é inerente a todas as formas de expressão verbal ou escrita, e este texto de Sandro Junqueira é disso, mais uma vez, testemunho.
Parabéns, Sandro!