09/07/2005

O morto

( um dia acordei afogado na irrealidade da minha imaginação e debati-me com o fantasma do concreto amórfico. recuei na intemporalidade do nada e caí no momento preciso da minha morte. rebentei o mármore frio da minha sepultura e desfiz os versos do poeta que sempre admirara. destrui mesmo a ilustração que gravara na pedra branca e enchi-me do rumorejar das árvores que cheiravam a vida e que vibravam ao dobre do sino metálico.
a cera pingava as minhas mãos e fazia-me sentir o drama do não ser nada. o ambiente carregado de tragédia confundiu os meus olhos já cerrados à luz mediana, mas esse ambiente pairava em mim com a formalidade do característico, revolvendo os sentimentos intempestivos que sempre me animaram, acordando a revolta intermitente das tempestades interiores que me lançaram no absurdo duma inexistência passiva. uns pontos esbatidos de amarelo assinalavam a homenagem mais sincera dos mortais e destes pontos escorria a cera diluída de morte que, obrigando-me a gritar a minha vida, impedia que o mundo me ouvisse, esta cortina de luz transitória separava-me da realidade presente, de toda a não-negação existencial que o meu espírito procurava negar.
fugi àquele ambiente de tragédia e de fatalidade comunicativamente impessoal, procurando na sensilidade dos pedintes a acusação da minha existência. chorei com eles o crime irrisório de uma transcendência palpável. admirei-os na sua pureza vagabunda, na conformação duma naturalidade emocional ilogicamente realizável. calei as vibrações ondulantes daquele mesmíssimo sino e atirei para longe o vácuo que rodeava a pedra fria da minha inconsciência. repus os versos do poeta e gravei de novo a ilustração nascida ao pulsar da artéria, embora não esperasse que a obra fosse igual a três mil anos. fechei-me para sempre no mar onde morrera afogado e não mais voltei à realidade...)
Augusto Mota, in "quadriculado", 1959, coimbra

4 comentários:

Anónimo disse...

Passei, mais uma vez por aqui e não resisti ao texto que me leva a deixar um abraço

Anónimo disse...

Sentia, de facto, saudades da escrita de Augusto Mota, o poeta/prosador, embora no texto ele diga que não.
Delicadeza e sensibilidade são as duas principais características deste perspicaz Autor.

Anónimo disse...

agora, Anamar, retiro o que disse noutro comentário anterior...a pressa pode, como no caso presente, ser muito boa conselheira.

Anónimo disse...

Filipe, o Augusto agradece - segredou-me!