18/11/2005

agosto

Recebeu o troco
e levantou-se lentamente tão lentamente quanto lhe era possível a fim de retardar o seu regresso ao calor da rua
Não é que lá fora estivesse melhor Antes a inércia de mudar de posição e a incerteza do tempo de espera
Acendeu um cigarro Começou a descer a rua enquanto as pessoas à sua volta obrigavam-no a pequenos desvios ávidas da rotina do dia a dia Não tinha porém importância porque ele descia expectante E só por isso achava graça a essa fúria formigal que levava os outros a chocarem consigo cheios dessa importância de correrem para o tédio que sabia domesticamente enfadonho
A praça estava cheia Parou frente aos isqueiros - os mesmos de sempre que há anos se mantinham no mesmo sítio - Olhou os títulos dos jornais Verificou que na esquina da Loja das Meias ainda lá estava a camisa que gostaria de comprar Seguiu em frente parando em cada montra cumprindo o ritual de ver o já visto deleitando-se na confeitaria dos primeiros anos do séc. XX - nos bolos e na montra - olhando as armas que nunca pensaria usar vendo de soslaio o imobilismo de alguns comerciantes Virou à direita e subiu mais uma vez a rua de desesperantes esperas e desesperas Das escadinhas à direita saiu a miúda Hesitou em dar-lhe a importância do costume mas o estado de alma permitiu-lhe um outro olhar Valeu a pena As sandálias gastas As pernas soberbas - bem feitas - mesmo bem feitas Aliás todo o corpo era bem feito não necessitando da saia apertada nos sítios errados Ajustou o seu passo ao dela e sorriu à mudança de ritmo de andamento Depois passaram a trocar os olhares nas montras e entre a brincadeira e o jogo de acelera e trava de montra-descarada-montra-impessoal foi-lhe descortinando o rosto de menina que não teve tempo de brincar as rugas que lhe haviam chegado o peito que terminava num estômago apertado por um cinto Pararam no largo Olharam-se OLÁ-OLÁ e aquele longo olhar contou todas as estórias As contáveis e as outras Despediram-se como amigos O calor continuava em todos os lados mesmo estando à sombra e sendo 19h30m Começou a descida para casa É notável como a cidade pode oferecer o passeio conforme as necessidades Se tivesse seguido a rua dos eléctricos além de já ter chegado há muito tempo não teria sido crítico de moda e de arte nem teria pena da amiga que arranjara Pior Tinha-se impacientado com a espera Subiu ao nono andar A casa estava naturalmente fresca e foi bom abrir as janelas para deixar entrar o sol e o rio Luz Água Silêncio Acendeu um novo cigarro e correu para o duche Deixou a água correr ao longo do corpo Primeiro sem ordem Depois em escolha metódica Curva a curva Dos pés à cabeça que inclinou em ângulo certo de modo a incidir no pescoço no peito no estômago nas ancas nos pés De novo a repetição dos jogos de água e os sentidos que se apuram Esqueceu a passagem do tempo Mas não a suficiente para precisar de um pouco de música Agarrou a toalha e serviu-se de wiskhy Estendeu a mão Tirou o 3º andamento 5ª sinfonia de Malher e deixou-se ficar quieto oitava a cima garganta a baixo Brincava com os dedos e com o copo quando o telefone tocou O ciclo fechava-se e ele viu sentada a seu lado a imagem que guardara o dia inteiro Chegava de modo breve e seguro com aquele sorriso nos olhos que dizia
é bom amar
Atendeu
naquele estender de mão cingir de corpos - curiosamente mesmo nos mais íntimos encontros mesmo nesses nunca haiam assumido qualquer compromisso - e no falar das generalidades diárias
era bom ouvi-la
Mesmo quando não tinham coisas novas a dizer ficavam a recordar os instantes de ontem só pelo prazer de amar Era noite escura quando se despediram Desligou o telefone levantou-se vestiu-se comeu qualquer coisa e saiu
Ana esperava-o A rotina O dia a dia O tédio
gabriela rocha martins, inédito, "quando a poesia se veste de prosa".

6 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns.
Leitura obrigatória.
Óptimo.

Anónimo disse...

Brilhante texto, Maria Gabriela!
Gosto muito.
Um beijo.

Anónimo disse...

Um mero acaso trouxe-me aqui.
Ainda bem. Que texto espectacular!

Anónimo disse...

Pela sua superior qualidade este texto não deve morrer aqui.
É preciso dar voz aos Escritores deste País.

Anónimo disse...

Um encanto, Maria Gabriela! Não gosto de comentar um texto acabado de ler pela prima vez: já o li pela 2.ª lenta vez, mas tenho de o ler outra e outra... Um texto que se esgota à primeira leitura, não é literatura: são frases. Assim, vou guardá-lo para logo. Mas, para já, parece tão simples retratar a rotina, o dia- a-dia, o "déjà vu", não parece ? Mas não; é preciso viver, imaginar, recriar em cada uma das muitas (tantas) personagens que vivem a sua rotina, diferente da dos outros, mas rotina...E quando o acaso quebra a rotina...nasce o homem novo ? Ou a ilusão? Vou ter que reler , reler. Simples leitora, sempre apressada, só quero dizer que gostei muito de descobrir a sua prosa! Um abraço.

Anónimo disse...

muito, mas mesmo, muito obrigada.