O leitor está cego: a luz cai sobre o olhar: as coisas vão nascendo minuciosas despertas e límpidas, no passado. Na página, as letras vibravam e uma ausência brilhava como um clarão branco que chegava aos olhos e os olhos eram uma parede de luz intransponível. Ouviam, tacteavam. a luz cai...contra o olhar...: como o dia se fazia abria-se o mundo: tu. A neve espalhava-se no cérebro do leitor, pelas suas árvores imóveis como uma fotografia. Vê, dizia. - Isto é um livro; eu sei, pensava ele humildemente; um dia li um livro; contava uma história: passava-se no México e havia muito calor, a noite ia caindo sobre a terra, descendo pela colina até à cidade, até às ruínas. Até ao rio. Como era inverosímil o que tinha acontecido não passara ainda um ano... O leitor ia virando as páginas que muito lentamente ondulavam; estava cego e agarrava o livro num esforço paciente. Algures no seu passado, branca sobre a luz branca, uma letra ardia: os contornos hesitantes de um A antigo, pintado, um quarto do sol, a secção de um disco girando sobre si mesmo. Um simulacro. Algures, então, como no futuro, o leitor está cego. Manuel Gusmão, in "O leitor escreve para que seja possível", Janeiro de 2004.
3 comentários:
Escrita num frémito de louca lucidez...
Gosto da imtemporalidade deste texto escrito a "muitas" mãos.
também nós, por isso o publicámos.
1 bj.
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