04/11/2005

O SOL, A LUA E O ASTRO MAIOR / se o leitor escreve, tu escreves

1.
Que faz aquele que lê? Uma distinção se impõe à partida: há quem leia de passagem, sem chegar a pousar, ou repousar, sobre o corpo do texto, quem leia apressado e aflito, esbaforidamente, porque precisa de passar a outra coisa, e essa coisa é que é linda, ou é ela o que importa. Lembro-me - lembras-te? - de como havia, no final dos anos de 1960, uma porta de Junta de Freguesia, onde se devia ir ler um edital que continha os nomes dos "mancebos" ( era esta a palavra, ainda deve ser assim hoje ) chamados para o serviço militar. Algumas noites antes eu começava a sentir o sono atravessado por aquela porta, mas nada pior do que a noite que precedia a fixação, aquela lista de nomes arrancando os olhos que deviam adormecer e mantendo-os escancarados, prontos e ansiosos para ler, e a tornar absurdos os gestos daquela madrugada, como se não fizesse sentido haver gestos morosos e laboriosos no dia em que devia estar no outro lado da cidade um papel com palavras escritas, que diria, com a imposição de lei, se eu podia continuar a estudar, ou não, se era a guerra, ou a morte, que me chamavam, ou não, e, por isso mesmo, autocarro, táxi, tudo parecia absurdo no percorrer de uma distância que era decisiva, até que me aproximava daquela porta pensando nas letras dos consultórios de oftalmologia, que letra é esta?, e agora as cinco letras a seguir, vê? não vê?, consegue decifrar o que está por baixo?, e eu olhava a porta, o papel sobre a porta, as letras no papel, as palavras formadas pelas letras, e queria que ver fosse não ver, não ver traço algum do meu nome naquela lista que alguém preenchera na rotina das repartições, e a certa altura eu já lia, está ou não está?, e fico mais uma vez nesta cidade ou parto para outra terra, vivo - ou não? Fico, vou ficar, vou ainda ficar. O meu nome não está, nada cheguei a ver, vi apenas o vazio do meu nome, a grande claridade de não haver nada para ler, e os outros nomes serem nomes estranhos, molduras e ângulos anónimos de um clarão eufórico, uma mancha a arder naquele papel, uma porta a arder na cidade, e era então, era nesse momento, precisamente, que o corpo entrava num outro estado de leveza, repouso e exaltação, e podia subir com o livro que trouxera até ao Jardim da Estrela, quase deserto àquela hora, sentar-me num banco, olhar o céu, colocar o corpo na posição exacta para ler, dizer que neste momento eu tenho a vida toda à minha frente para ler todos os livros do mundo, abrir o livro sobre os joelhos, ler a primeira frase, levantar os olhos do livro, e dizer: eis-me na posição certa para ler um livro, disposto a ler, a entrar lentamente na fresca e frondosa casa das palavras escritas...
Eduardo Prado Coelho, in "O Leitor escreve para que seja possível", Janeiro de 2004.

10 comentários:

Anónimo disse...

Sou um leitor apaixonado de Eduardo Prado Coelho e fico particularmente satisfeito por encontrá-lo neste blog.

Anónimo disse...

As crónicas de Eduardo Prado Coelho são de leitura obrigatória. Felicito os autores deste blog por tê-lo entre eles.
Aguardo mais como esta.

Anónimo disse...

De muito bom gosto esta escolha. Já era tempo de Eduardo Prado Coelho ter lugar neste blog.
Parabéns, meus Amigos!

Anónimo disse...

O acto de ler como substantivo próprio numa crónica que nos traz, à memória, tempos que ainda estão muito vivos, em muitos, de nós.
Os das gerações de 60 e 70 não esquecem estes editais e o sufôco da sua leitura.

Anónimo disse...

Que a casa das palavras escritas deste blog dê as boas vindas a Eduardo Prado Coelho. O Eduardo merece-o.

Anónimo disse...

eis o princípio de outras apostilhas como esta...no tempo, outros textos de Eduardo Prado Coelho poderão ser lidos neste blogue. seguem, como os demais, uma sequência de publicações... mas, podem estar certos que outros virão.

grata.

Anónimo disse...

Boa noite, Eduardo.
Encontros nocturnos sob a música de Chopin. Sabe bem reler-te aqui.

Anónimo disse...

Lentamente aqui deixo um beijo de partida.

Anónimo disse...

Amiga Gabriela, para quando, afinal, a Revista Litterarius?

Anónimo disse...

pergunta, muito bem, Luiza, só que essa pergunta não me deverá ser feita, mas antes às senhoras e senhores do IPLB e da Gulbenkian.

infelizmente em projectos como esse, há sempre necessidade do vil metal, e enquanto não tivermos luz verde, procuramos outras alternativas. como o "Palácio das Varandas". parados ou à espera do Papai Nöel é que nunca!