05/11/2005

encontro com platão

Hoje encontrei Platão à mesa do café. Falámos de poesia e de corridas de cavalos. Mas falámos, sobretudo, de escravos. Dos escravos romanos e dos escravos gregos. De escravos. Sim, principalmente de escravos. Recordámos os tempos da velha Roma, as reuniões no forum, a coluna de Trajano, os jogos do circo. Falámos de escribas e dos homens das galés. Ele próprio, segredou-me, foi escriba e homem de galé. Remou anos a fio em ousadas galés ao compasso ritmado do maço do arrais, ajudando Roma a conquistar o poderio dos mares. Foi, mais tarde, um filósofo da oceanidade. Ritmou a imaginação pelo arfar das suas remadas loucas, até atingir a sublimidade do poeta. Depois escreveu. Escreveu, sobretudo. Ditaram-lhe leis ousadas para os homens e para as crianças. Leis trágicas e severas demais para um poeta tão grande. Idealizou outros sistemas de sociedade e negou todos os direitos do espírito ( talvez vingança dos anos que arrastou preso aos remos das galés! ). Da sua Grécia quis fazer uma nova cidade para o novo homem. Lutou. Sacrificou. Nada conseguiu. Hoje sente-se miserável na derrota.
Que tristeza sentiu ao contar as atrocidades que fez cometer ( hoje Platão é um homem civilizado! ) em honra de uma ideia tão falsa. Julgou que todos os homens poderiam ter o dom da sua poesia. Agora, depois de ter lido Freud, é que ficou a conhecer o verdadeiro homem. Por isso se mostrou tão interessado em contar todos aqueles crimes ( aliás é vulgar encontrá-lo à mesa do café, expiando a sua culpa ). Mostrou-me depois uma luxuosa edição, ricamente ilustrada com fotografias, daquilo que outrora lhe dera tanto prazer. Viam-se milhares de corpos a agonizar em valas comuns, leões do Pireu a devorar crianças enfermas, velhos a chorar o mal que não haviam cometido. E aquele escravo estrangeiro, agonizando em prece quase religiosa, a pedir perdão por toda aquela carnificina?! E aqueles corpos queimados nus para fertilizar as terras de cultura com as suas cinzas? Isso está lá, na página mil novecentos e quarenta e cinco da tal edição que o filósofo me mostrou. Mas há muitas outras fotografias e todas no mesmo sítio, como se se quisesse limitar as atitudes aberrantes do homem a uma página que se vira despretenciosamente em álbum de luxo, só para impressionar as visitas.
Se, a princípio, me repugnou o contacto com homem tão perverso, hoje admiro-o quando se arrepende. É belo ouvir o seu coro de lamentações e os seus outros desejos de grande vida, de bela vida. Agora, isto é, ultimamente, já nem costuma falar destas coisas. Falamos normalmente de poesia e de corridas de cavalos. Gosta muito de conversar comigo e passamos horas e horas a discutir sobre tanta coisa! Sabemos que nada se consegue, mas, ao menos, como poetas temos o dever de pensar em muitas coisas. Pensar é já reconhecer a existência de um problema. A atitude subsequente já não é da nossa responsabilidade. Nós só afirmamos. Quando os poetas pretendem outra coisa que não seja isto destroem a sua verdadeira essência e ludibriam as suas próprias intenções.
Temos este grande exemplo de Platão. Que nos sirva tão terrível expiação, num século em que uma pessoa reconhecer-se culpada é a mais ousada atitude, um século em que a acção individual se disfarça num pluralismo insignificante e cobarde. Por isso tenho pena de o deixar com os olhos cheios de lágrimas, quando me despeço para ir trabalhar e o adivinho triste e alquebrado, andando de café em café, onde já ninguém tem paciência para o ouvir.
Augusto Mota, inédito, in "Metáfora,", 1962.

14 comentários:

Anónimo disse...

Uma sã loucura vislumbra-se ao longo de todo o texto onde a realidade se confunde com o sonho.
Onde começa o EU? Onde termina o OUTRO?

será que Platão não somos nós?

Anónimo disse...

Metaforicamente se alcança o outro lado do texto. O meta-texto onde a linguagem atinge as laias do absurdo.
Mas desde quando e até onde somos ( nós ) seres lineares?

Anónimo disse...

Magistralmente, Augusto Mota coloca na boca de Platão a descrença de um homem do séc.XX/XXI.
E quantos Platão não encontramos neste País?
Infelizmente bem mais do que desejaríamos.

Anónimo disse...

Quanto pessimismo?!!! Será que foi isto mesmo o que Augusto Mota pretendeu com este texto, ou pelo contrário, não será ele um grito de alerta?
Uma chamada de atenção para que tal não se repita...
Vejam quando escreve:
"...É belo ouvir o seu coro de lamentações e os seus outros desejos de grande vida, de bela vida..."
...bem haja pelo seu grito, amigo Augusto Mota!

Anónimo disse...

Desculpe, Anamar, mas não concordo consigo.
Todo o texto é, de facto, um grito.
Não de alerta. Antes de tristeza ( e até de comiseração ), de constatação de todas as atrocidades cometidas pelo ser humano - já se esqueceu do Holocausto, da guerra do Vietname, e, no caso português, da guerra colonial?
Veja a data em que este texto foi escrito - 1962 - o inferno de Angola, Guiné e Moçambique.
Minha boa amiga, acorde! O ser humano não é tão perfeito quanto a minha amiga pretende...infelizmente!

Anónimo disse...

De certa maneira, desculpe, José Artur, mas acho que a Anamar tem razão. Relendo o texto, parece-me que há uma certa remissão ( dos pecados, porque não? ) das más acções da Humanidade. No final, enquanto Platão ( o homem velho ) acaba só vagueando de mesa em mesa, o homem novo ( o que trabalha ) que sente, se comove e vive, surge. É A CRIAÇÃO, meu Amigo! É POESIA.
É o tempo do HOMEM NOVO - O POETA.
É a vitória do homem, ser individual, sobre a massificação, o uninanismo.

Anónimo disse...

Há tempo que por aqui não passava, mas parei circunspecto nesta leitura desenfreada.
Há tanto de nós neste texto. Há tanta lágrima contida neste grito literário.

Anónimo disse...

E quem é, ao fim e ao cabo, este Platão - espelho facetado - o outro lado de nós.

Soluço contido. Simulacro.

Anónimo disse...

tudo é tão belo quando comentado por vós. assim vale a pena, de facto,criar e manter o "Palácio das Varandas" sabendo que vos temos ao nosso lado.

gratíssima.

Anónimo disse...

uma vez mais sem exemplo, porque não deveria ser eu a agradecer, mas sim o Augusto Mota.

está preguiçoso, hoje, o nosso Almirante!

Anónimo disse...

Prisioneira de uma birra do meu servidor de internet, só agora aqui cheguei e sem a certeza de concluir o meu pensamento antes que esta aberta se apague. Nada vou acrescentar ao muito que já foi dito: é uma novidade este texto, para mim, e li-o num turbilhão de metáforas possíveis, como todos vós. Não vou tentar descodificar nada, pois parece-me que estes textos do Mota são polissémicos: só ele poderá esclarecer, mas um escritor não tem necessariamente que esclarecer... O que eu penso ( sinto como a Teresa e a Anamar) é que o texto é muito importante, pois pôs todos a pensar, mexeu com o que há de importante dentro de nós. Provocou, despertou : será sem dúvida o lamento do filósofo pelos erros do passado, mas também a passagem do facho ao Homem Novo, criando neste a esperança de não cometer os mesmos erros? É importante também ver que está datado, sem dúvida, da década de 60 ...Há tantos significados neste texto e essa tessitura é que nos incomodou como agentes de um futuro, será?
Boa noite.

Anónimo disse...

Desculpem, mas insisto na recusa de Augusto Mota à massificação e ao pluralismo decadente, em prol do individualismo criativo.
Apesar das múltiplas leituras que todos os textos pressupõem, acho que, mais uma vez, Augusto Mota - pelo que conheço das suas publicações - utiliza o passado como ponte para um futuro possível.

Nele está sempre latente a apologia ao HOMEM NOVO.

Anónimo disse...

às vezes tenho uma vontade louca em alimentar polémicas. sobretudo, em textos de outros autores. todavia, não deverá ser esse o meu papel no "Palácio das Varandas", mas tenho pena!

fica para outra vez...então, também entrarei na liça, amigas Teresa, Anamar e Fernanda. prometo!

Anónimo disse...

best regards, nice info » » »