13/11/2005

a dança das horas

Debruçados sobre um horizonte de fim de tarde aguardamos as palavras que virão animar o silêncio e a espera. Por entre os fios que puxam o Sol para trás do palco, onde dançam as horas do dia, vemos letras dispersas na paisagem que assiste ao espectáculo dos sentidos. E ouvimos o vento empurrar tais letras lá de muito longe até nós, para, assim, podermos juntá-las a nosso bel-prazer e saborear o significado das novas palavras que as mãos tacteiam em busca de um perfume secreto que acalme a dança das horas no palco das emoções.
À medida que o Sol se apaga para lá da cortina de fundo, as estrelas recolhem os fios ainda quentes de sustentarem o dia e convidam a Lua a entrar em cena. As horas exercitam novo bailado e descem no palco os fios da noite. Da teia pendem os cabos que seguram as palavras justas para o espectáculo das horas que, como marionetas, dançam o nascer da Lua. E o perfume da noite traz o sono antes do sonho e tudo adormece na paisagem. Esta, cansada, inclina-se e as letras que sobraram da construção das palavras escorregam pela linha do horizonte abaixo e fogem, apressadas, para o território-das-coisas-que-esperam. Onde desesperam.
É difícil este bailado das horas num cenário de palavras escolhidas pelas mãos sobre as letras que caminham insistentemente para nós. À noite, sobretudo, quando a paisagem se reduz a um palco iluminado pelo luar das recordações e os actores agradecem, à boca de cena, os aplausos que nunca tiveram. As horas esgotam o tempo real e ficamos, apenas, com uma saudade imensa para viver o sonho que as palavras permitem, antes de as letras deslizarem todas pela fronteira do horizonte abaixo, a caminho da inutilidade e do desespero.

Na vida real somos actores de um outro destino onde não vemos os fios que movem os nossos passos e obrigam o nosso querer. Só no sonho educamos os gestos do corpo e saboreamos o perfume do tempo que não existe nas horas.

Augusto Mota, inédito, in "A Geografia do Prazer", 2000.

8 comentários:

Anónimo disse...

Mestre Augusto Mota apresenta-se com um novo registo literário.
Gosto da ênfase dada a cada frase e o texto apresenta-se, no todo, com uma limpidez que me seduz, agradavelmente.
Lê-se com fluidez.

Anónimo disse...

Suave e docemente se constrói um texto com princípio, meio e fim.
Um hino à vida e ao sonho.
Obrigada, amigo Augusto Mota.

Anónimo disse...

E as horas dançam com a suavidade calma de quem tudo espera...e desespera.

Anónimo disse...

Actores consumados e consumidos pelos aplausos que nunca se hão-de ouvir. Assim se retiram as máscaras ao fim de um dia em que até o sonhar é corrompido. Abençoado seja o reino dos justos. Dos incautos reza a História...
Mas será que o sonho é verisímil?

Anónimo disse...

Mais um sonhar acordado, Mestre Augusto Mota!...

Anónimo disse...

Depois de um texto pesado de Sandro Junqueiro, sabe, muito agradavelmente, repousar os olhos neste texto onde o sonhar ainda é possível.
Obrigada, Augusto Mota!

Anónimo disse...

Concordo plenamente com as palavras de Teresa ! O sonhar docemente.É possível e vale a pena.

Anónimo disse...

tudo é doce quando escrito e descrito com palavras suaves.
obrigada, meus amigos.