Que significa ler? Etimologicamente aquele que lê é aquele que escolhe, que vai colher na árvore dos textos os frutos escolhidos: ler é eleger, escolher as palavras que emergem do fio do discurso, dar-lhes o brilho e a cor que lhes convêm, e por isso todo o leitor é um eleitor, e não há leitura sem uma política da leitura, e não há verdadeira leitura sem uma democracia da leitura.
"Democracia da Leitura" - utilizei esta expressão no filme Conversa Afiada de João Botelho, onde os textos de Pessoa e Sá-Carneiro eram lidos, não por leitores profisionais, mas por gente que não fazia profissão de saber ler, e por isso eles hesitavam, eles, os leitores incertos, tropeçavam nas palavras, embrulhavam as sílabas, mas por isso mesmo, neste modo vulnerável de desemaranhar os textos, eram cada um deles o cidadão comum, anónimo, vulgar, que exerce o direito de eleger, o direito de ler. Tratava-se assim de um acto colectivo ( mas "ler" é também "reunir", "coleccionar", "fazer a colecta" ) em que a comunidade se fazia à volta do isolamento da leitura, coro implícito e silencioso, ou ruído de fundo nos corredores dos conventos medievais, quando a leitura de cada um era ainda uma leitura em voz alta e o coro se fazia na diversidade dos textos e dos corações ali recolhidos ( isto é, lidos e relidos por Deus na eterna recolecção dos textos divinos ).
E foi dessa leitura que cada um ganhou o seu estatuto de "intelectual", aquele que tem a capacidade de compreender, porque é capaz de "inter-legere", isto é, de escolher naquilo que há para ler o que vale a pena ser lido, e escolher no atropelo dos textos o que vale a pena ser retido para dar aos textos o sentido que eles têm, ou melhor, esse sentido que eles podem ter, porque ler coloca-nos sempre no futuro de cada texto: o leitor escreve para que seja possível. E assim cresce a inteligência de cada um na inteligência de todos, colocando-se o intelectual no seu lugar de ser orgânico, elemento de um corpo que aumenta ( o autor é aquele que aumenta o mundo e que nisso provisoriamente se autoriza ) em sentidos e sentido, preso da paixão do inteligível, disponível para o processo da inteligência comum, e no entanto sempre privada, sempre no círculo da leitura, sempre na luz do "abat-jour", murmuradamente como diz o vice-cônsul no India Song: "o amor é a inteligência de ti" - dessa mulher desconhecida que dança até de madrugada.
Havia um termo para "amor" que era "dilectio" e dizia-se "amante dilecto", o amor que se tratava, entre aquele que diligentemente escolhe um ser, um objecto amado, e uma pequena zona do mundo, incisão ou cicatriz, que passa a ser o lugar, o corpo, o olhar, o gesto ou o ciciar da pele que se tornam, entre todos os possíveis, os que se dizem predilectos. Trata-se então de não negligenciar o que se elegeu ou recolheu, e criar em torno desse amor a sua lenda, isto é, o corpo de palavras a serem lidas como um mito, lenda e legenda de um encontro, de uma imagem, de uma fotografia, o fotograma dilecto, a fotografia delida, a fotografia lida e relida na gramática da sua luz, no drama da sua memória, na elegância de um olhar silencioso, na repetição do nome que a nomeia.
Eduardo Prado Coelho, in "O Leitor escreve para que seja possível", Janeiro de 2004.
5 comentários:
Texto de superior qualidade e de um só fôlego.
Assim se prima!
Assim vale a pena ter um blogue.
Muito bom este texto de Prado Coelho.
Foge ao trivial.
Parabéns pela qualidade muitíssimo acima da média.
Soberbo.
gratos.
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